10.5.05

Resposta da Aline ao Desafio I

Miguel no Inferno


Os dedos longos acenderam a luz do visor do relógio de pulso. Cinco para a meia-noite, se lia. Logo tudo estaria terminado.

Ele olhou para a escuridão do firmamento, pensando em tudo pelo que passara até ali. Na angústia que o levara ao topo daquele prédio. Na dor, no sofrimento, na humilhação. Em outra época as lembranças o teriam feito chorar, mas naquela noite lágrimas não correriam. Não havia mais razão para elas. Faltava pouco para a liberdade, agora.

A cidade brilhava como um céu estrelado, salpicada de faróis, néons e fluorecências. Olhando assim, de longe, havia até algo de poético naquele lugar. Mas a realidade era diferente - e ele a conhecia bem demais para se deixar enganar por aquele espetáculo luminoso não-intencional. As pessoas que andavam agora por aquelas ruas (tão pequenas aqui de cima, veja só) costumavam mirá-lo com medo, repulsa ou desprezo - ou talvez uma combinação de tudo isso, ele não sabia bem; seus olhos viam o mundo de outra forma. No entanto, pior do que o medo era ainda a indiferença. Ele sofria, e isso era óbvio, mas a multidão correndo ao seu redor fingia-se alheia ao que ele sentia, ao que pensava e representava.

Deu um passo a mais, olhando para baixo. Trinta andares o separavam do inferno. Sentiu uma leve tontura. Não era medo; a vertigem lhe agradava.

Olhou mais uma vez para o relógio e sentiu uma derradeira pontada de remorso. Não queria ter de tomar uma medida tão drástica; tinha consciência de que ia ferir alguém que não merecia sofrer. Mas estava decidido. Não havia outra escolha. As circunstâncias o forçaram a chegar àquele extremo. Ao menos tinha um pensamento com que se consolar: depois daquela noite, todos iriam se sentir arrependidos pelo modo como o haviam tratado. Iriam chorar, erguer as mãos para o céu, pedir perdão. E ele, do alto, distante, assistiria a todo esse espetáculo grotesco com um sorriso gentil no rosto. Já os teria perdoado.

Seu coração batia mais forte a cada segundo que passava. Podia sentir o momento se aproximando, o momento em que a Terra ficaria livre daquele câncer, daquele motivo de desgosto.

Livre. A palavra tinha o som do bater de asas dos anjos.

Subiu na beirada de cimento que contornava o prédio, os dedos dos pés movendo-se alegremente no vazio. Seus olhos buscaram um ponto familiar no fim da longa avenida. Era meia-noite. O alarme do relógio disparou, numa infinidade de bipes.

Lá longe, bem longe, o quarteirão da embaixada explodiu em luz e névoa. Então veio o estrondo percorrer seu corpo como um calafrio, e ele sorriu.

4 Comentários:

Blogger Mariana disse:

...

Caralho, você me enganou diretinho!!!!!!

Sensacional!!! Esse final fora dos padrões é simplesmente esplêndido, deu um chapéu em qualquer clichê!

Mas tenho que dizer que, mesmo que você optasse pelo "clichê" do suicídio, seria um dos clichês mais bem feitos que eu teria visto na minha vida. Adorei o cunho psicológio do texto todo! Totalmente horrorshow! XD

Bjos bjos bjos!

5/13/2005 7:05 PM  
Blogger Paty disse:

Uau! De tirar o fôlego. Lembra do palavrão que soltei quando você chegou ao fim da leitura? :) Foi devido a absoluta surpresa pelo final bombástico (com trocadilho!). Você enganou a todos com maestria e lendo o conto pela segunda vez fica evidente a genialidade do truque. Gosto da cadência do texto, que vai num crescendo que retrata bem a angústia do Miguel numa contagem regressiva implícita, e do estilo que vai do descritivo-cinematográfico ao monólogo interior sem perder o ritmo. Respondeu ao desafio à altura (com outro trocadilho!) :)

5/14/2005 1:30 AM  
Blogger MôNiCa disse:

Essa foi na trave! Todo mundo pensando q o cara ia se matar e ele mata um monte de gente menos ele próprio! E o pior, ainda se sente totalmente poderoso com isso.´E é um tema bem atual, esse.
Parabéns moça, vc respondeu mto bem ao desafio!
Bjs

5/14/2005 6:55 PM  
Blogger L. disse:

Absurdo, mulher - como teus escritos costumam ser!

Como todo mundo diz, realmente, você enganou direitinho. Teu texto segue numa certeza quase absoluta até o último segundo. E que delícia que é ler outra vez, vendo tudo se encaixar, um sentido novo pra cada palavra.
(... Dá pra dizer que nossas respostas têm algo em comum, hm? ^^)

Por último, absurda a coisa toda de Miguel ser cultuado em lugares altos. Céus!

5/14/2005 10:01 PM  

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