14.5.05

Resposta da Maria ao Desafio I

Sentou-se na baixa amurada com as pernas para dentro, afrouxou a gravata e abriu o primeiro botão da camisa. Se fumasse, seria neste momento que sacaria do maço e do isqueiro, e nada teria sido mais clichê do que sua primeira baforada sumindo junto com o sol. Mas, na ausência do vício, o cinematografismo ficou por conta do assobio. No início tentou apenas uma nota perdida - não sabia bem o que entoar, fazia-o apenas para que o momento não passasse em branco -, mas sentiu-se tão ridículo que logo engatou uma melodia qualquer, a primeira que lhe ocorreu. Só precisava de um objetivo.

Espiou por cima do ombro. Lá embaixo, as minúsculas luzes se acendiam aos poucos e começavam seu moroso deslocamento. Não tardaria o amontoado sonoro que caracterizava as cidades grandes, que ele conhecia tão bem a ponto de amar. Não que tivesse algum sádico gosto pelo grotesco, mas porque aquele caos era tão displicente, tão despreocupado de si mesmo, que ele podia se deslocar por seus labirintos sem pudores. Ah, como compreendia aquelas máquinas sempre morosas, mas capazes de acelerar de zero a cem quilômetros por hora em apenas quinze segundos...

Tentou olhar mais fundo a altura a que estava, mas sua posição não lhe deixava ver longe. Por que estava naquela posição acovardada, em vez de pendurar as pernas ao longo do edifício e ficar tête-a-tête com a cidade? Confiava suficientemente em seu equilíbrio, mas e se algo atrapalhasse? Alguém podia empurrá-lo, podia sentir uma súbita vertigem, o vento podia ficar demasiado forte... A inconseqüência de sua infância podia voltar e provocar seu id...

Obrigado por seu bom-senso, mas com a intuição apavorada, decidiu que aqueles medos eram tolices. Girou sem hesitação sobre os quadris e, apoiando as mãos logo atrás do corpo, deixou penderem as pernas na frente da fachada do prédio. De início, foi como se abrisse uma revista e contemplasse o panorama em página dupla; a falta de bordas, porém, lembrou-lhe de que o objeto era ele. Sentia-se um pouco claustrofóbico, mas melhor assim: antes fazer um piquenique no labirinto do que desesperar-se em busca da saída.

Lembrou-se de que deixara o computador ligado: esquecendo-se da altura a que estava, levantou-se rápida e vigorosamente, e correu em direção às escadas que caracoleavam para baixo. A vista foi uma experiência que jamais repetiu ou esqueceu. Nem poderia: parte dele se atirou para a cidade, numa queda imaginária e vertiginosa.

5 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Puta que o pariu, se eu disser que amei vou estar sendo mais do q redundante!!!!!!!!

Nossa, tô com inveja da metalinguagem do primeiro parágrafo ("nada teria sido mais clichê do que sua primeira baforada sumindo junto com o sol" foi horrorshow!), da referência ao id (essa foi mto bem sacada) e do tom displicentemente acrofóbico (já te falei que sofro de acrofobia?? XP) do teu texto! Excelente!

E não tenho palavras pra última frase... ^^

Bjos bjos bjos!

5/14/2005 9:24 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Sabe, parece que uma personagem de David Lynch em uma sequência inicial de um filme nunca realizado fugiu para o seu texto... A narrativa flui com facilidade, e a despeito de não ser totalmente tranparente, pode-se ver através dela como por um pedaço de renda. Pode-se entrever, desde a morte até as mais essenciais banalidades, o peso da gravidade em noites na cidade.

5/15/2005 9:57 AM  
Blogger L. disse:

Eu leio, leio, e nunca sei bem o que comentar. Mas, vamos lá!

Tenho a impressão de que o que há de mais fantástico nesse seu texto é a naturalidade. A reflexão flui, as imagens tão claras que chega a ser cinematográfico. Sempre fico com aquele gostinho de encontrar algo absurdamente rico e, ainda assim, simples - deliciosamente simples.

E concordo com a Mari: não há o que dizer sobre a última frase.

5/17/2005 9:50 PM  
Blogger Paty disse:

Já mencionei que amo o primeiro parágrafo? Absurdamente cinematográfico, dá pra *ver* a cena inteira. E a presença freudiana do id é a cereja do sundae pra definir a personalidade do sujeito, displicentemente racional. Também ótima a idéia de ele se sentir claustrofóbico no alto do prédio. E é simplesmente fantástica a comparação com a página dupla de uma revista.

Sim, ele é um loser. Mas tenho a impressão de que o fato de uma parte dele ter se jogado pode ter tido algum efeito sobre sua personalidade, quem sabe? Não dá pra simplesmente fazer "um piquenique no labirinto" e sair incólume...

O que mais dizer? Vocabulário impecável, descrições idem. Gosto demais da forma como seu texto é enxuto, nenhuma palavra é desperiçada ou excssiva. Bom demais!

5/20/2005 11:28 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

... E tudo que eu tenho a dizer é que eu sempre tenho a angustiante sensação de que o cara se levantou pro lado de fora do prédio e caiu - mais ou menos como papai caiu da cama de cima de um beliche, numa noite de plantão no hospital...

12/26/2005 1:45 PM  

Postar um comentário

<< Home