22.6.05

Resposta da Liliane ao Desafio V

Número 4
(Baseado em You've Got to Hide Your Love Away.)


Por um instante que se mostrou incomodamente longo, deixou de perceber o mundo ao redor; sequer sentia o próprio corpo, ou mesmo pensava qualquer coisa. Aos poucos, algumas memórias pareciam voltar, ainda que extremamente turvas, como se uma névoa espessa estivesse envolvendo seu córtex cerebral. E então veio a dor no peito, colossal, espalhando uma violenta sensação de vazio que o dominava por completo. Ele bem que tentava entender o que acontecia, mas tudo em sua mente se movia em câmera lenta - ou talvez, rápido demais.

Ouviu um ligeiro tilintar, ao longe, e seus olhos automaticamente correram até a porta do estabelecimento. Através do vidro opaco, ainda pôde distinguir uma familiar cabeleira ruiva lá na rua, se afastando.

Numa explosão de lembranças desconexas, sua cabeça ganhou um peso paquidérmico, que suas mãos apararam prontamente. Começava a sair do estado de letargia, pelo menos os reflexos estavam em dia. A má notícia era que, olhar baixo, logo reconheceu a caixinha de batatas-fritas, em meio às quais um tímido anel de prata tentava se mostrar.

Veio o nó na garganta - ou talvez seu coração bancasse o suicida, saltando traquéia acima. Agora tudo fazia sentido, cada momento voltando com uma riqueza de detalhes quase mórbida, imensamente cruel. Sentiu a umidade de uma lágrima esbarrando no canto da boca, e tudo que conseguiu fazer foi voltar a cabeça para a parede. Não queria testemunhas, não agora que se sentia tão pequeno. Maldição, por que escolhera justo o horário do almoço? Sua única vontade era sumir, partir-se em quaquilhões de átomos espalhados pelo ar.

Chorando baixo (ah, por que tinha de passar por isso?), encolheu-se o máximo que seu corpo desajeitadamente alto era capaz. Subitamente, uma de suas mãos cortou o ar, veloz, arrancando a aliança de seu esconderijo engordurado. Enfiou a delicada peça no bolso da calça, algo que tenso, tentando fugir dos olhares alheios. Afinal, ele já sabia o que encontraria neles - escárnio. Ali estava um otário, levando um pé na bunda logo após tentar se passar pelo último dos românticos. Sem dúvida eles viram muita graça na cena toda: o paspalho esconde a aliança no meio das batatas (seria no refrigerante, não fosse o uso de canudo); passo seguinte, ela encontra e, contrariando todas as expectativas do sujeito à sua frente, o rosto sardento se torna lívido de pavor. O resultado era ele sozinho naquele fast-food dos infernos, rezando para ser tragado pela cadeirinha amarela que ocupava. Precisava fugir do ridículo, mas havia gente demais naquele lugar. E, diabos, por que olhavam tanto? Sentia-se como uma aberração, recebendo um misto de piedade e chacota.

"Fica assim não, você sai dessa."
As últimas palavras que ele ouviu antes de sua alma abandonar seu corpo, quando o que era dito por seu projeto de namorada deixou de ter significado. Esse foi o melhor consolo no qual ela pôde pensar? Como, como ele poderia fazer isso, se não conseguia nem sequer escapar dali? Se faziam questão de esfregar na sua cara o quão miserável era?

Risadas.
Virou para trás com uma fúria assassina nos olhos vermelhos, caçando quem quer que ousasse rir de sua situação. Fosse como fosse, sentiu uma gana absurda de estrangular as duas estudantes que se divertiam com o brinde do lanche. Controlou-se, respirando fundo (ou fungando?) enquanto se ajeitava em seu assento. O banco rangeu, quase num resmungo, fazendo-lhe o favor de chamar ainda mais atenção. Num esforço vago de normalizar a situação, se empertigou, ousando ainda experimentar uma batata. Nunca desejou tanto ser banal, simplório, igual a qualquer um - e até fazia progressos nesse sentido, regulando aos poucos o ritmo do corpo. Mas eis que vinham os murmúrios abafados, as conversas distantes, e ele tinha certeza de que todos os comentários giravam em torno de sua desgraça; mais um pouco, e morreria de vergonha. Pegou-se questionando o sentido daquilo, a lógica distorcida que fazia com que sentisse uma necessidade absoluta de esconder aquilo que, até quinze minutos antes, lhe fora motivo de orgulho. E isso trouxe mais lágrimas, mais batatas e mais mágoa afogada no copo de Coca-Cola. Reação em cadeia, o constrangimento crescia, o peito parecia rebentar e qualquer vestígio de racionalidade o abandonava. O golpe final foi o "tadinho" que veio do nada, mais discreto que um sopro, cruel feito a justiça divina decretada por aquele adorável demônio. Era tão difícil entender que ele não precisava de piedade? Que a única coisa que poderia ter alguma serventia era justamente o que ele tinha acabado de perder?

Não, ninguém ali sabia de nada. Eles não entendiam, e no fim todos pareciam cópias vazias do palhaço na entrada. No fim das contas, não era ele o centro das atenções; todos os outros ali é que dividiam o picadeiro, querendo fazer piada com quem estava na arquibancada. Entre bobos e clowns, não faziam idéia do que ele estava passando. Então, por que ter vergonha? Estava isento de culpa.
Choraria até não ter mais nada a esconder.

3 Comentários:

Blogger Paty disse:

Minha primeira impressão foi: "Tadinho!!!! Eu quero abraçar esse menino!".

Impressionante como a história capta perfeitamente a letra! Com o detalhe dos clowns originais terem virado o Ronald McDonald.... Está tudo lá: o escárnio coletivo, o homem sentindo-se pequeno, e, obviamente, o amor que deve ser escondido.

No mais, já disse e não me canso de repetir: você descreve sentimentos como ninguém, por isso seus personagens são tão críveis. E que fofa a idéia da aliança nas batatinhas! Um cara assim não merecia o veto... Além disso, o final, cortante, fica ainda mais pungente por ser brusco e em aberto.

6/25/2005 2:26 AM  
Blogger Mariana disse:

Descrição de sentimentos entranhada na medula dos textos: essa é minha irmãozinho (plagiando a Laura) Lili.

Me deixa boquiaberta como vc passeia pelo coração desse cara e constrói um personagem triste, inseguro, abanonado e, ao mesmo tempo, orgulhoso, já q não quer q ninguém no MC Donald's veja sua tristeza. (Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência, mas abafe).

E qto à música, o título me sugere q estejamos dando um conselho a esse pobre rapaz ao longo da leitura. Afinal, o momento é de tristeza, mas não gostamos de o ver assim por causa da bruaca.

Parabéns, mulé! Mais uma bela resposta!

Bjs bjs bjs!

6/25/2005 10:04 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Poxa, quanta ingenuidade...s erá que ainda existem pessoas como ele? Me deu vontade de aparecer no fast food e conversar com ele sobre a Mary Poppins e a Amèlie Poulain, só para animá-lo!

Esse foi um lindo texto, a despeito do suspense ter me amtado até o final... do jeiot bom, é claro!

Beijão,
Amanda

6/30/2005 10:39 AM  

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