31.5.05

Resposta da Maria ao Desafio IV

Os lençóis frescos, desordenadamente macios, abraçavam-no irregularmente como eróticos tentáculos inanimados. Cristiano sentiu o travesseiro lhe acarinhar a barba por fazer e, ficando em posição fetal, apertou-o entre os braços e as pernas, num tranqüilo aconchego auto-suficiente. Não pretendia sair tão cedo daquele pequeno paraíso sensorial, e já se preparava para deixar-se adormecer novamente quando percebeu, ainda de olhos fechados, que a luz no quarto estava intensa demais. Apenas isso não teria sido suficiente para despertá-lo –o vento podia ter aberto as cortinas e deixado entrar aquela morna e inconveniente luminosidade, nada de mais naquilo–, mas havia algo mais no ambiente a aguçar-lhe os sentidos: um cheiro fresco, cítrico, emanava de algum ponto junto da janela. Um perfume que ele conhecia tão bem, mas que tão pouco esperava.

Abriu os olhos com alguma preguiça e bastante ansiedade. Diante de si, na poltrona, o homem de terno escuro e rosto austero, com longos cabelos negros presos e cavanhaque meticulosamente aparado, desviou o olhar das mãos entrelaçadas e mirou-o, semissorrindo de lado. Cristiano espreguiçou, deslizando o corpo longilíneo sobre a cama, e deixou que a camiseta descobrisse parte do abdome. “Não esperava vê-lo aqui, muito menos a essa hora.” O outro não se moveu.

Não estava acostumado à mesura daquele homem, e achava que jamais se acostumaria. A olhos vulgares, ele tinha uma postura quase séria, mas bastava penetrar em seu mundo com os códigos certos para que caísse a máscara e um homem espirituoso, afável e atencioso, quase feminino, se desenleasse diante dos olhos. Por alguma razão que ele desconhecia, desde o princípio aquele homem se fizera agradável para ele. Nunca lhe fora sarcasticamente indiferente, conforme já o vira agir com outras pessoas, ou mesmo simplesmente áspero, como sabia que era capaz de ser. Por vezes um tanto calculista, e de início talvez defensivo, mas sempre envolvido. E por isso mesmo, ele não conseguia reconhecer seu companheiro naquela fortaleza serena, sequer lhe agradava lembrar de que ela existia.

Longo silêncio. Longo. Ele sentou-se na cama, em posição de lótus, e afagou o lençol ao seu lado, sem muita pretensão. “Vem aqui.” Alguns segundos. O outro continuou sem se mover, apenas ostentando uma expressão contemplativa, estranhamente condizente com sua personalidade expansiva. Compreendendo a mensagem, Cristiano levantou-se e caminhou em direção ao banheiro. Parou no batente da porta e fez algum gracejo sobre seu hálito, só para ver o sorriso do outro se abrir por completo. Tarefa cumprida, pôs-se a escovar os dentes.

Minutos depois, com os loiros cabelos repicados quase penteados, e a barba ainda por fazer, voltou ao quarto. O homem ainda estava na poltrona, agora com o cotovelo esquerdo no braço do móvel, a cabeça apoiada sobre a mão fechada e as pernas cruzadas em “L”. Parecia bem mais à vontade, o que fez Cristiano se sentir um pouco mais tranqüilo, embora continuasse desconfiado. Alguns dias antes, o homem deixava aquele apartamento, dizia, para nunca mais voltar. O que o trazia de volta ele não sabia, e dizer que não lhe importava seria quase uma verdade –quase. Estava feliz, e isto era um fato.

Ele sentou na cama, de frente para o outro, que então voltara a encará-lo. Pôs as mãos ao lado do corpo e arqueou a coluna como se tentasse suprimir o espaço entre eles. “Pensei que fosse jogar a chave fora.” Cristiano esperou.

“Você sabia que não.”

“Como havia de saber? É você quem lê minha mente, não o contrário.” Cristiano sorriu timidamente, ainda com os olhos sobre os do outro.

“Esse Mister M...” O outro gracejou. Cristiano não riu.

“Por que você foi embora, Guido?”

“Estava confuso.” Cristiano olhou-o repreensivo. Sabia que aquela era a forma mais fácil de dizer alguma coisa quando não se queria dizer nada. Guido sentiu-se desconfortável, e o resquício de sorriso em seu rosto desapareceu. “Estava com medo.” Cristiano assentiu.

“Às vezes parece que você disse tudo. E às vezes parece que ainda existe tudo pra ser dito.” Cristiano respirou fundo, endireitou a coluna e apoiou as mãos nas coxas. “Por que você voltou?”

Guido não respondeu. Apenas levantou-se da poltrona e parou diante do companheiro. Cristiano levantou os claros olhos esverdeados na esperança de perpassar os olhos negros do outro, mas foi como se atirasse a alma contra uma parede de tijolos. Impenetrável: estava entrincheirado dentro de si mesmo. Cristiano se entristeceu e baixou a cabeça, desiludido. Guido seguiu-o com o corpo e, apoiando as mãos sobre os joelhos do outro, aproximou os lábios dos dele, sem tocá-los.

Nenhum deles se moveu. Guido, ajoelhado sem submissão; Cristiano, rendido, com a lembrança e a iminência da boca do outro. Um instante prolongado, um beijo interrompido. Alguns segundos depois, Guido sussurrou, esbarrando os lábios nos de Cristiano. “Mi dispiace.” E beijou-lhe um beijo forte, lento e intenso.

Cristiano abraçou Guido, mas ele não retribuiu: manteve o corpo inerte, como que se concentrando naquele beijo, mergulhando nele para que mais nada pudesse perturbar aquele toque, que significava sua fé e sua perdição; o limite entre sua felicidade e sua dor ali, no contato cinemático das línguas, dos lábios, dos dentes, das expectativas. Aquilo, que não era o vazio da ausência física, nem a invasão imperialista do sexo: aquele ato que era a reciprocidade, a igualdade, em que um não podia ser mais ou menos do que o outro. Eram o equilíbrio.

Os lábios se apartaram. Cristiano abriu os olhos e encontrou os de Guido ainda fechados. Neste instante, ele se pôs a afagar o rosto, os cabelos e os ombros do companheiro, expiando sua tensão incontida desordenadamente, desajeitado. Respirava rápido, eufórico. Mas o outro não demonstrava qualquer emoção. Até que, enfim, abriu os olhos.

Naquele momento, Cristiano parou. Pela primeira vez, os olhos de Guido se abriam para ele por completo. Viu tristeza. Viu remorso. Viu medo. E soube o que ele pensava naquele instante. Soube que era a última vez que se viam. Guido respirou fundo e se levantou. Beijou a testa de Cristiano, demonstrando que tinha por ele um sincero respeito. Em seguida, beijou-lhe a face esquerda e se afastou. Da porta, olhou para o companheiro uma última vez, antes de virar as costas e seguir, sem parar, para a porta da rua.

Guido abriu a porta do apartamento; ali, quatro homens o esperavam. Parou. Sentiu uma queda vertiginosa dentro de si mesmo, o coração batendo mais forte, de medo e de amor. Assim que saiu, sem conseguir olhar para trás, dois dos homens que ali estavam, com pequenas pistolas nas mãos, entraram. Com a cabeça baixa, ele falou, em italiano, a um dos que ficara do lado de fora, o mais velho. “Podia pelo menos ter-lhe dado as vinte e quatro horas de praxe, babo. Se não por respeito a mim, por tradição, que fosse.” Neste instante, Guido ouviu os gritos de Cristiano e os tiros que se seguiram. Pôde perceber que o companheiro ainda gemeu entre os primeiros disparos, e depois calou. Deixou escapar uma lágrima.

O homem com quem Guido falara tirou um revólver da cintura. Engatilhou e mirou na cabeça ainda baixa do filho. “Quem é você para falar em tradição? Quem é você para falar em respeito? Depravado!”

O disparo ecoou no corredor estreito.

4 Comentários:

Blogger Mariana disse:

...

Meu Deus!!!!!!!!

É visceral, vertiginosos, tesudo e revoltante! Pobres meninos apaixonados! O "crime" de seu amor custou a vida dos dois... Coitados mesmo...

E sem palavras pra descrição do beijo... Me deixou sem fôlego!

Bjos bjos bjos, maninha!

5/31/2005 1:14 AM  
Anonymous Anônimo disse:

Minha linda, é incrivel como vc escreve bem...consegue transbordar exatamente o sentimento devido atraves da descriçao...
Mt bom mesmo...
Bjs
Rick

6/02/2005 1:29 AM  
Blogger Paty disse:

Esse conto é um chute no tórax, daqueles que deixam ser ar. Custei a me recuperar depois da sua leitura. A descrição ao longo da história centra mais no psicológico do que no físico, nos fazendo entrar na mente do Cristiano (e gostar dele!) e bater de frente nas imepenetrávieis barreiras de personalidade do Guido, sempre contido e fácil de odiar. Até o final trágico.

Já mencionei que seus começos de contos são ótimos, não? Conseguem prender e situar rapidamente o leitor. Mais adiante, a piada do "Mister M" quebra a tensão, mas não muito. O leitor fica na corda-bamba, sentindo que há algo errado, sem saber exatamente o quê.

E a descrição do beijo? Não vejo palavra melhor que intenso! Especialmente porque, mais uma vez, não se prende à parte física e vai diretamente ao interior da mente do Guido, sabedor do que estava por vir. Aquele beijo na face esquerda, mais do que um beijo da Morte, era mesmo um beijo de Judas. Têm o tom trágico de um "Romeu e Julieta" esses dois.

Ah, e "semissorrindo"? "Desenleasse"? "Perspassar"? "Cinemático"? Me lembre de nunca jogar "Dicionário" contigo, heheheh! (Sim, isso sou eu com inveja do seu vocabulário)

6/05/2005 2:02 AM  
Blogger MôNiCa disse:

Esse foi D+!!! Quem adivinharia o final?
Concordo plenamente com a Paty: um Romeu e Julieta (só que sem Julieta, naturalmente), um tom trágico de amor impossível que só vence com a morte. Apesar de toda a tragédia que envolve o txt, eles venceram no final!
Fora que tem todo um preconceito envolvido por parte do pai do Guido, o que reflete o pensamento de mta gente ainda...
Parabéns, Maria! Vc mandou mto bem (fora que, eu já falei, eu jamais conseguiria escrever sobre isso com tanta naturalidade como vc fez...)

6/05/2005 3:16 PM  

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