27.5.05

Resposta da Priscila ao Desafio III

Aquele, de uma vez por todas, era um dia diferente. Folga no trabalho, filha no passeio da escola, esposa batalhando suas próprias migalhas como consultora de beleza da Avon, o apartamento inacreditavelmente plácido e vazio... oportunidade única de comungar experiências consigo mesmo, numa espécie de reflexão solitária. Pôs em sua cabeça que toda aquela situação de ilustre paz fora especialmente concatenada por uma força superior, advinda dos mais insólitos e escusos pastoris cosmológicos. A esta rara conjuntura universal sua alma responderia libertando de uma rígida prisão subjetiva o aspecto mais obscuro e, decerto, atrofiado de sua personalidade morna – o lado poeta.

Não havia mais como escapar. Estava sem sono e sem fome. Nada de faxina nem compras por fazer, e as roupas, indefectíveis, pareciam sorrir no armário, de tão organizadas. Queria escrever, mas não sabia como começar. Claro, precisaria de um tema, antes de tudo; só que a simbólica lâmpada das idéias insistia em permanecer apagada sobre sua cabeça – e isso o deixava realmente invocado. Diz a máxima popular que de poeta e louco todo mundo tem um pouco, e foi exatamente isso que, por fim, motivou seu inabalável esforço mental: se todos podem, porque logo eu fugiria à regra? Não... isso não! Olhou ao redor e a lâmpada simbólica ensaiou um certo brilho, mas tão langoroso quanto um urso panda chinês em períodos reprodutivos. Concluiu, como se demorasse para captar o óbvio, que apenas os melancólicos conseguem elevar o espírito de modo a produzir algo tão sensível como uma poesia. E pôs-se a procurar algum traço de melancolia em sua vida. Mas... como era difícil!

Ele era um homem que podia se vangloriar de uma situação, sem dúvida, ambicionada por muitos, pois fazia parte de uma minoria de felizardos que não encontrava motivos superficiais para reclamar da vida. Talvez por alguma predisposição genética, sorte irreparável, ou mesmo pela – certas vezes necessária – boa e velha ingenuidade, nosso herói era um homem absolutamente feliz. Conseguira sair do vermelho no cheque especial dois ou três meses atrás, convivia harmoniosamente - tanto nas brigas quanto nos amores - com sua benquista esposa e era pai coruja de sua filhinha – a mais inteligente, bonita, esperta, estudiosa e engraçada menina do mundo, também conhecida como Pentelhinha pelos vizinhos.

Tratou, portanto, de encontrar outro espectro de motivações para que seu “tão-oculto-que-merece-as-sandálias-da-humildade” poeta interior aflorasse de vez. Pensou na pouca explorada romantização do dia-a-dia e em seus desdobramentos incontornáveis rumo ao fim dos tempos, munidos de indigeríveis percalços e sucumbidos pela força enfadonha e destruidora da rotina. “Todo dia ela faz tudo sempre igual/Me sacode às 6 horas da manhã/Me sorri um sorriso pontual/E me beija com a boca de hortelã”. Ah, não... só os gênios transformam rotina em poesia, e eu, definitivamente, não me enquadro neste grupo – concluiu, lançando certo desdém e, quiçá, uma leve ponta de inveja aos poetas bem-sucedidos.

Voltou ao tema melancolia. Só que não a escassa melancolia quase-vazia em sua existência presente, e sim aquela guardada no fundo de suas mais remotas lembranças. O avô que perdera na infância, as brigas com os irmãos, os arroubos de violência do pai frente às notas baixas no boletim, as professoras intransigentes que – quanta petulância! – não lhe permitiam trocar com os colegas as figurinhas do Jaspion, no meio de suas aulas chatas... Que mais serviria? A dor de uma despedida, a frustração de uma derrota, os orgasmos múltiplos provocados por um elogio – sempre filtrados, porém, pelo seu invariável aspecto sóbrio - tudo isto poderia servir à feitura de uma poesia. Ensejou um discreto sorriso - o sorriso daqueles que estão prestes a parir, orgulhosos, uma produção independente. A primeira delas! Estava nervoso, as mãos ligeiramente inquietas em busca de qualquer objeto apertável fugiam de seu controle.
Sentado de frente ao laptop, pôs-se a regurgitar acontecimentos passados que, numa espécie de revival, tornar-se-iam novamente presentes. E tudo o que conseguiu foi o título – para muitos a pior parte, fato que talvez revele seu talento inato de “titulador”: As Rimas Floreadas de um Cara Entusiasmado que Só Quer Ser Poeta. Grande demais, talvez inadequado, mas fixo. Gostara do aspecto vanguardista, afinal. Olhou para o relógio e percebeu que já estava há praticamente oito horas seguidas mastigando idéias. Não comeu, não bebeu, não foi ao banheiro, ignorou os ruídos abafados do estômago, tudo pelo malfadado esforço subjetivo. Neste exato momento sua esposa entrava em casa, e trazia no colo a querida Pentelhinha. Cumprimentaram-se e cada um foi para o seu canto, como é do feitio das famílias modernas. Nosso herói, estafado com louvor, desligou o laptop, tomou um copo de leite e foi dormir – desistira temporariamente de sua missão, sem qualquer resquício de culpa, mas ainda esperançoso. Quem sabe os sonhos não lhe tragam a tão aguardada inspiração?

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

...
Jesuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuus!!!!!!!!!!!

Completamente acachapada com teu texto, mulé! Sem palavras para o vocabulário, as comparações geniais, a construção do personagem e teu sarcasmo pentelho!!!!

E, por falar em pentelho, quero uma Pentelhinha pra mim!^^

Bjos bjos bjos e parabéns! Mais um pé direito pra vc!

5/27/2005 10:17 PM  
Blogger Paty disse:

... E o protagonista apelou para o Sonhar em busca de inspiração! Colar não vale! :D

In-jokes de Sandman à parte, seu estilo me deixa atônita com a profusão e precisão dos adjetivos. E as metáforas ao longo do texto? Adoro as roupas que sorriem no armário, por exemplo.

De resto, por que todo mundo acha que é preciso estar triste para escrever? Discordo veementemente! Em meus momentos deprê, não consigo passar de fragmentos! (talvez pra combinar com a alma em frangalhos, sei lá).

Ah, sou fã da Pentelhinha, do momento pai-coruja também e do título quilométrico do poema não-nascido! :D

És uma trovadora de mão cheia, Priscila! :)

5/29/2005 1:40 AM  
Blogger Aline Brandão disse:

Sei lá, Paty, mas eu também caio nessa categoria dos que ficam mais inspirados na deprê... (com poesia, pelo menos! :D)

Quanto ao texto, Pri, adoro o jeito casual dele. Teu protagonista tem o jeito da "pessoa-comum-filho-de-deus"... e no entanto tem um poeta distraído dentro de si, como (eu aposto!) muitas outras pessoas-comuns-filhas-de-deus têm...

5/29/2005 11:28 PM  

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