23.5.05

Resposta da Maria ao Desafio II

O rapaz correu os olhos pelo salão, atencioso, a procura de algum convidado que segurasse um copo vazio. Lá ao fundo, à sua esquerda, avistou uma falante senhora de meia-idade, que mais de uma vez fez menção de levar a esguia taça à boca e parara ao lembrar que em seu interior não havia líquido algum. Assim que a notou, ele corrigiu a postura, ajeitou as mangas do paletó branco, e caminhou em direção à mulher, menos com elegância do que com presteza. Era noite de Ano Novo.

Aproximou-se da senhora discretamente, parou à sua direita e, com um movimento gentil, abaixou a mão que empunhava a bandeja prateada da qual se erguia solitária uma taça de champanhe. Apercebendo-se da presença do rapaz, a mulher sorriu, pegou o cálice cheio e deixou em seu lugar aquele vazio que segurava. Sem mais delongas, ele se retirou e caminhou pelo amplo salão em direção à cozinha, o mais imperceptivelmente que conseguiu. As pessoas a sua volta davam-lhe passagem, mas nem sempre notavam sua presença, imersas que estavam em seus trajes brancos e suas conversas efusivas, ansiosas com os instantes finais do ano. Risadas, alegria, beleza: tudo brilhava e tudo parecia tenso, como se fosse se esvair com o ano que ia embora.

Empurrou a porta e entrou na cozinha. Ali, o caos era muito mais evidente: umas bandejas sendo preparadas, outras sendo trazidas; um vaivém de garçons e cozinheiros, calor, gritos de ordem... Uma colméia em plena atividade, pendendo de uma árvore num jardim tranqüilo. Ele sabia que seu trabalho era ali dentro muito mais do que lá fora, entrando e saindo tal as abelhas o faziam. E assim que deixou a tranqüilidade do salão em que estava e veio para a caótica cozinha, isto se tornou muito claro: instintivamente, abandonou sem transições a sua postura cortês e também se encheu de vigor animal, trocando o copo vazio de sua bandeja por outros, limpos. Preparava-se para enchê-los quando o homem que contratara o bufê entrou, inadequado como uma borboleta num formigueiro, distinto como seus convidados. Com uma forçada simpatia distribuiu algumas ordens, e quando já se preparava para voltar ao salão, abordou o rapaz e o impediu de encher as taças. Logo seria meia-noite, era conveniente que levasse a garrafa de champanhe num balde de gelo: agilizaria o serviço e saciaria todos os convidados no exato momento da virada do ano. O rapaz obedeceu.

Saindo novamente da cozinha, sentiu o ar fresco que circulava no salão: o choque térmico não foi o único que teve. Talvez fosse um exagero dizer que o novo ambiente era calmo, mas sua tensão era lúdica, despreocupada, muito diferente do caos atarefado e enclausurado da cozinha. Novamente se adaptou ao ambiente, e cumpriu sua tarefa da maneira mais distinta que sua educação bruta lhe permitia. Aliás, adaptar-se tinha virado sua especialidade. Desde que saíra de sua cidadezinha no interior do Piauí já tentara a vida em vários centros urbanos, já encarnara várias profissões, e jamais deixara a desejar em qualquer delas: fora pedreiro, entregador, faxineiro. Seu porte esguio e seus olhos claros apesar da cor da pele, que era amarelada mesmo tostada de sol –seu bisavô teria sido um francês, diziam–, rendiam-lhe, naquele momento, o melhor dos empregos que já tivera desde a migração: era garçom num bufê. Não se queixava do ordenado, que era suficiente para se manter e ainda lhe sobrava um pouco para mandar para a mãe, que ficara no Piauí, e por isso mesmo continuava a se adaptar.

Olhou para o relógio na parede: faltavam vinte minutos para a meia-noite, e justo agora que precisava se concentrar no trabalho lembrou-se de sua terra, da família, da mãe... Tinha de voltar à sua forma mimética, não podia negligenciar sua obrigação ou perderia seu emprego. De outros piauienses saudosos aquela cidade estava cheia, e não seria difícil arranjar algum para colocar em seu lugar. Aquela era uma noite de festa para aquelas pessoas do salão, mas para ele era uma noite de trabalho. Lembrando-se disso, o rapaz engoliu a distração e voltou a observar os convidados, em busca de algum que ele devesse servir.

Quando já faltava um minuto para a meia-noite, o anfitrião convocou os convidados para a varanda. O rapaz soube que podia se retirar, pelo menos por enquanto. Em sua bandeja, a garrafa estava suada, quase vazia. Ele nunca tinha bebido champanhe, apenas cidra –que um vizinho levara no reveillón anterior–, e entretanto empunhava agora uma garrafa da nobre bebida, que praticamente inexistia em sua íntima presença: restara-lhe a carcaça, mas a essência lhe continuava negada, senão clandestinamente.

Ele se sentou num canto do salão, perto da porta da cozinha. Lá fora, os convidados começavam a contagem regressiva. Deixou escapar uma lágrima: àquela hora, a mãe estaria ajoelhada diante da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, sua mãe que jamais bebera champanhe ou usara um traje daqueles que vestiam as senhoras da festa. O ano havia de ser melhor, ele pensou, bebendo de um só gole o pouco espumante que restava, direto do gargalo. Aquele trago seria para a sua mãe, para a sua terra. Voltaria ainda aquele ano para os braços da terra que o parira e os regaria com champanhe, ele prometeu.

Os fogos estouraram lá fora. O rapaz olhou para a garrafa que esvaziara e sorriu.

2 Comentários:

Blogger Paty disse:

Amo a construcao sutil do personagem. Palavra a palavra, você desenha o perfil e nos faz gostar desse garoto batalhador, responsável, que busca ser o melhor no que faz. E pra isso contribuem os gestos, o ambiente. Você dá o "mood" da história de uma forma sensacional. Por exemplo no contraste entre a placidez da festa e a balbúrdia da cozinha, brilhantemente descrita pela metáfora da colméia no jardim e da borboleta no formigueiro (num quê de Naturalismo, com a animalização do homem e tal). Tudo culmina no final pungente e esperançoso. Fantástico, maninha!

5/23/2005 4:36 AM  
Blogger Mariana disse:

QUE FODA!

Vou te dizer q me emocionei qdo vc leu teu conto. Sério, o sentimento de peixe-fora-d'água-mas-q-deve-se-resignar do rapaz me deixou um tanto triste... Triste com essa desigualdade gritante q existe em nosso país, onde uns se divertem bebedo champagne e outros, ao invés de se divertir, têm que trabalhar para ganhar um salário de merda e ter o direito de viver... Triste com a saudade que ele tem da mãe e da terra, abandonados em nome de uma luta. E triste com o fato de que, infelizmente, muito se trabalha e nada se garante...

Mas foda-se minha tristeza! O texto ficou um primor! Adorei as metáforas do terceiro parágrafo e o tom esperançoso que assume no final!

E eu quero pegar esse cara no meu colo!

Bjos bjos bjos, maninha!

5/23/2005 10:42 AM  

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