17.5.05

Resposta da Liliane ao Desafio II

Cárcere


Olhos fechados, respirou fundo antes de conferir o espelho. Seu reflexo lhe trouxe a satisfação morna e cômoda de quem percebe que as coisas estão como de costume e, justamente por isso, bem. Olhos esverdeados, vestígios de uma barba por fazer, cabelos castanhos que faziam questão de seguir um corte nem moderno, nem antiquado. Escolhera uma de suas tantas calças jeans idênticas, blusa branca, camisa azul - ou seria cinza? Deixou a questão de lado; o importante é que a imagem tão familiar representava com precisão cirúrgica quem ele era. E, afinal, isso parecia próprio para a missão que lhe aguardava.
Borrifou perfume no pescoço e nos pulsos, espirrou três vezes e deixou o banheiro, seguindo o corredor estreito que levava à sala, à cozinha, à porta - seu destino final.

Abriu a geladeira, em busca de seu trunfo. Não conseguiu conter um sorriso ao ver o champagne ali, sua nobreza ganhando ainda maior destaque graças a medíocre caixinha de achocolatado com a qual dividia a prateleira. De certa forma, aquela garrafa nova em folha tinha uma imponência assustadora, cercada pela crueza de seus clichês alimentícios - talvez isso lhe rendesse uma boa foto, qualquer dia. Mas era assim que deveria ser, não? Nenhum grande gasto era necessário naquele apartamento impregnado de simplismo e objetividade. Aquele era seu mundo, dotado da funcionalidade de um saco de batatas e uma garrafa d'água. A pompa vítrea e borbulhante da bebida era invasiva, uma ameaça à previsibilidade que permeava seus dias.

Diabos, aquela noite deveria ser diferente, mesmo.

Mudara-se para aquele prédio cerca de dois anos antes, pouco menos. Desde então, seguia a mesma rotina: acordava, saía para trabalhar, voltava para casa, dormia. Nas férias, viajava, sempre para o mesmo lugar. Mas vez ou outra ela surgia pela manhã, um riso sonolento quebrando o silêncio do corredor. Não sabia seu nome, mas em sua mente ela atendia pela alcunha de vizinha. Os encontros mais freqüentes ocorriam por volta das sete horas: ele jogando o lixo fora, ela chegando dos festins que a noite anterior lhe propiciara. Era uma moça mais ou menos da sua idade, mais ou menos disponível, que estava indubitavelmente perto.

O gargalo gelou sua mão. Sem ter muita certeza se a vizinha teria ou não taças, decidiu valer-se de duas das que ganhara quando resolveu morar sozinho. Observou a garrafa e calculou que, apesar do lacre, a moça não daria importância caso ele tomasse um gole; além do mais, poderia ser útil para ganhar coragem. Serviu-se de uma pequena dose, e mais outra.

Pensou no que estava prestes a fazer, e por um segundo acreditou que não poderia ser mais patético. Na intenção de estabelecer contato, lá iria ele, oferecer álcool para a mulher do apartamento ao lado. Mas não poderia ser de todo ruim; ainda que ela rejeitasse a bebida, ao menos o babaca do champagne jamais seria esquecido. Tudo que ele precisava fazer para entrar para os anais da história era atravessar a porta e tocar uma campainha, simples assim. Encheu a taça, averiguando que agora sim alcançava o cúmulo do ridículo.

De qualquer forma, era uma oferta de paz. Funcionou com colonizadores e índios, por que não haveria de funcionar com ele? E não era uma tentativa de aproximação com o intuito de causar qualquer mal à moça, muito pelo contrário. Sua meta era estabelecer contato, talvez passar a seguir a cartilha da boa vizinhança. Era só atravessar a porta.
No mais, ela não teria razão alguma para lhe expulsar. Afinal, que garota em sã consciência mandaria para fora de sua casa um sujeito bem-apessoado, cheio de boas intenções (e mais umas outras de segunda-mão), munido de uma inocente garrafa de champagne? Para ela, ele devia ser o vizinho - um cara quieto, que não causa incômodos, talvez envolto numa sedutora aura de mistério. Isso tudo sem sequer ter dito qualquer coisa além de "bom dia". Mais um pouco de bebida, para comemorar seu feito.

Deixando a cozinha de estilo americano, foi se recostar no portal. Alcançara a última fronteira, finalmente, e julgou ser digno e merecedor de outra taça, que desceu muito mais depressa que sua linha de raciocínio. Fora um ligeiro entusiasmo, o álcool ainda não tivera qualquer efeito sobre ele; parecia ter uma capacidade natural de neutralizar bebedeiras e porres.

Concluiu, sem qualquer expectativa, que formavam um casal bonito. Compartilhavam características - cabelos, olhos e pele quase no mesmo tom (os dela sempre tendiam a matizes mais claros). Ainda assim, ela parecia ser sua antítese. Bela, esfuziante e livre, provalvelmente não conseguiria deixar de chamar atenção nem se quisesse. Ele, por sua vez, tinha a garantia genética de ser o mesmo tipo de pessoa, mas em algum momento indeterminado entre o colégio e a faculdade sua evolução se degenerou, chegando a esse ponto crítico. Por razões que ele mesmo desconhecia, acabou se tornando um completo desajustado social, uma criatura capaz de passar em branco por qualquer roda - e nem a beleza era um problema para seu dom. Evitava os outros, a televisão e o rádio sendo suas janelas para o mundo. As fotos, também. Espalhava pelas paredes os frutos bem-sucedidos de seu hobby, seu ofício, presos em molduras sem adornos. Talvez pudesse falar das fotos com ela. E bebeu mais. Quem sabe a bebida não lhe apresentaria um plano B, para quando o primeiro assunto acabasse?

Notou que começava a se sentir sonolento e sacudiu a cabeça, tentando espanar o peso das pálpebras. Ouviu o relógio da sala anunciar as onze horas, só confirmando o tempo que ele perdera ali. Se quisesse falar com a vizinha, que fosse logo. Estavam separados por apenas duas portas, e ele tinha pleno poder sobre cinqüenta por cento do obstáculo - ou deveria ter. Mais um pouco de champagne (você não faz idéia do quão vergonhoso isso é, faz?), e arriscou a maçaneta. Não adiantava: aquilo parecia trancado por dentro, por fora, selado, lacrado. Buscou coragem na garrafa mais uma vez, mas não encontrou nada. Chegou a ter vontade de esmurrar o empecilho de cerejeira, e concluiu que talvez estivesse um pouco alto.

Suspirou. Encostando a cabeça na parede atrás de si, pensou no que poderia significar seu pretenso encontro. Meditou sobre as mudanças que aquilo poderia trazer para sua vida, a idéia de compartilhar seu dia-a-dia, a rotina obviamente alterada pelo corpo intruso. Corpo exemplar, por sinal, mas ainda assim um intruso. Dúvida. Acomodação. Tomou o que restava da bebida pelo gargalo, que o presente fosse às favas. Cercado entre a porta e a ânsia, era forçado a tomar uma decisão. E ele detestava isso.

Um som familiar no corredor invadiu seu apartamento, sem o menor respeito por seu momento único de conflito interior. Logo reconheceu aquele riso, o rosto deslizando até a superfície de madeira, mão voltando a buscar a maçaneta. Talvez pudesse lhe dizer boa-noite, dessa vez.

Outra risada, que destoava por completo da primeira. Ligeiramente aturdido (não era do tipo que se deixa abalar), verificou o olho-mágico: ela e ele - um terceiro elemento, um imprevisto alto, de cabelos longos e o aspecto desleixado que apenas intelectuais e lunáticos adotam. Acompanhou enquanto o homem envolvia a cintura dela com uma clara conotação de posse; e ela, rindo, grudando no pescoço dele como se o mundo a eles pertencesse. Bem provável que isso fosse verdade.
Ouviu o elevador chegar e partir, e só então esboçou algum movimento. Ergueu a garrafa, já vazia, diante dos olhos. Observou-a com cuidado, antes de decidir abandoná-la ali, ao lado da porta.
Pela manhã, teria uma razão para passar na lixeira.

5 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

5/17/2005 11:47 PM  
Blogger Mariana disse:

Puta merda, q loser! Mas, pensando bem, um loser gostosão desses não ia me fazer mal algum ^_-

Agora a forma: simplesmente AMO tua fluência com as palavras. Elas ficam absolutamente casadas à narrativa, num tem um ponto quebrado sequer no teu texto. Sem igual! *_*

Bjos bjos bjos

5/18/2005 11:09 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Muito bem narrada esse pequeno relato das inseguranças de um cara tímido. Ou um babaca, se preferir. Não consigo sentir pena nenhuma por ele, porém. Um boçal, machista e bobo. Mas, como a Del mesmo disse, um loser gostosão... hehehe!

5/19/2005 7:24 PM  
Blogger Paty disse:

Sabe, eu queria abraçar esse cara! (Até porque ele é um gato :P) Não o acho tão loser assim, ele é apenas tolhido pela timidez. Entendo perfeitamente a angústia de fazer o primeiro movimento nesse jogo que deveria ser simples para todos. Contudo, o romance não passa do estágio platônico. Ela é o oposto dele, provavelmente o acharia um tédio. E ainda assim ele tem esperanças, coitado!

A narrativa é fantástica, gosto do seu estilo particular de descrição ("clichês alimentícios" é um primor, assim como as "intenções de segunda mão") e da auto-ironia depreciativa do personagem - especialmente quando se comunica com o leitor, o que o torna ainda mais simpático. Mandou bem, maninha! :)

5/20/2005 11:46 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Adoro esse texto. Talvez porque eu me identifique profundamente com o seu pseudo-Henreh... essa vontade de mudar sem mudar, esse comodismo ao mesmo tempo agradável e revoltante. Espero que a vizinha questione a presença da garrafa na lixeira do prédio no dia seguinte, porque se depender do seu loser a coisa nunca vai sair desse pé. :)

1/27/2006 2:01 PM  

Postar um comentário

<< Home