22.5.05

Resposta da Mariana ao Desafio II

Restos

Blurp Blurp Blurp.

Bebeu com rápida volúpia o conteúdo quente daquela garrafa e estrelas espumantes estouraram no céu de sua boca sem pedir permissão. Aquilo era champagne, mas aquela noite não era de Ano Novo e nem ela era uma ricaça querendo se aproveitar do brilho da nobre bebida. Porém, tinha o que comemorar.

Pousou a garrafa com delicadeza no criado-mudo e ficou olhando para ela em seu esplendor vazio. Sabia que seus pais a tinham comprado na França, durante a lua-de-mel, uns dois anos antes de ela nascer. De lá pra cá, muita coisa aconteceu na família. Ela nasceu, cresceu, começou a estudar, a namorar, a se drogar e entrou para a faculdade. Seu pai virou cirurgião famoso, ganhou algum dinheiro, prestígio e um pouco de autoritarismo com o passar dos anos. Sua mãe, coitada, deixou de trabalhar e passou a falar e a comprar demais. Uns dois assaltos, algumas brigas, festas clandestinas, mudanças de decoração e de amigos naquele apartamento confortável; e a garrafa estivera sempre ali, sem nunca ter sido violada em favor de nenhuma comemoração. Apenas lacrada, calada e impassível, como constante testemunha da rotina daquela casa.

Só que agora estava vazia. E, ainda assim, era testemunha. Vislumbrava a danação em forma de dor daquela bela garota triste e conflituosa, que tanto havia sonhado com sua liberdade. Mas era questão de tempo. Tudo acabaria e ela poderia enfim descansar.

Com os olhos castanhos ainda fixos e petrificados na superfície vídrica da garrafa, agarrou-a pelo gargalo e atrirou-a longe, para se espatifar em trocentos cacos no chão do quarto. Os pedaços do que, segundos atrás, era uma garrafa de champagne, disseram a ela que era a hora. Afinal, já estava decidido e nada podia fazer o tempo retroceder. E, nem que tivesse chance, ela desistiria do que estava fazendo. O espetáculo esdrúxulo havia começado e deveria ser, pelo menos, cinematográfico, digno de sua paixão por Hitchcock.

Com um gesto mecânico e não-automático, abaixou-se em frente aos restos de vidro repousados no chão e buscou um caco, o mais afiado de todos. Soltou uma risada crua antes de pôr em prática uma das macabras cenas do roteiro já escrito de sua liberdade e, depois, respirou fundo. O pedaço de vidro disforme perfurava a pele do pulso, demarcando uma trilha líquida e vermelha braço abaixo. Podia sentir a dor inanimada e indefinível daquele corte, uma dor que ela nunca havia experimentado e que jamais experimentaria. Mas, foda-se, a dor pouco importava para ela. Não fazia diferença.

Fez mais três cortes nos pulsos e podia ver mais dor e mais vermelho mesclando-se ao tom de pele. Parou um pouco, cansada que estava, e notou que ainda faltava algo para fechar o ritual com chave de ouro. Mirou o caco em suas mãos sujas e, por um momento, pensou no quão curioso era o fato de a velha garrafa de champagne (ou os restos dela, que seja) estar lhe ajudando rumo ao fim de tudo... Mas, com um sacudir de cabeça, deixou os devaneios de lado e partiu para o clímax de todo aquele ato grotesco: dois rasgos profundos na garganta. Pronto. Agora tudo acabava em mais vermelho e em mais dor inanimada e ela, finalmente, se achava livre e podia enfim esquecer do que a tinham feito sofrer. Ela ia descansar e...

Trin-trin-trin!!!!!!!!!

O telefone gritou no quarto. Do outro lado da linha, uma voz masculina. Com o telefone novamente no gancho, ela enxugou o vermelho de suas mãos e limpou as marcas das suas mãos da arma, para depois colocá-la sobre peito dele. E saiu, batendo a porta rumo à liberdade, que se abriu à sua frente em forma de danação e dor.

Na cama jaziam, inertes, os corpos baleados e cortados dos seus pais. E no chão jaziam os restos da única testemunha. Quebrada. Calada. E impassível.

3 Comentários:

Blogger Paty disse:

Em uma palavra? Intenso. Mais uma? Foda! Dá pra sentir o peso ao longo da narrativa. A impressão de que a garota é uma adolescente mimada não sai de todo. A crueldade choca, mas não espanta. E me faz pensar nos motivos dela. Realmente, a danação foi grande. E a forma como a garrafa foi usada, realmente, impressionante! Destaco o primeiro parágrafo, que já deixa claro o estilo direto do texto.

Maninha Mari, ce tá ficando cada vez melhor! E me surpreendeu com esse texto. Levou a crueza do seu estilo a um novo nível!

5/22/2005 5:55 PM  
Blogger Maria Laura disse:

Ela ainda vai se sentir muito mal com o que fez. Consigo visualisá-la sentada no quarto, encolhida, chorando. Ela é impulsiva e leva as excrecências de sua mente até o fim, sem perder a apoteose que tudo pode virar. Não é o crime perfeito, mas foi uma libertação pra ela.

A gente sente cada um dos sentimentos dela em cada ação, a gente imagnia casa traço da personalidade dela, a gente especula com segurança sobre a trajetória de vida. Isso é construir bem um personagem, mein Kind. Sem contar que o suspense é muito oportuno: deixa o leitor mais por dentro das emoções dela, porque fá-lo achar que a coisa toda é, de fato, sobre ela!

Uma pérola descritiva e psicológica, irmãzinha. Mal posso esperar pelo próximo desafio...

5/23/2005 1:26 AM  
Anonymous Anônimo disse:

Eu deveria ter desconfiado do final surpresa quando você citou Hitchcock... ô coisa de Norman Bates, hein?

Parabéns. É vertiginoso. Mas ainda acho que a champanha estava estragada e deu onda na garota... hehehe!

5/23/2005 8:21 PM  

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