20.5.05

Resposta da Patrícia ao Desafio II

Espada de Dâmocles

Era noite de Ano Novo. Faltavam algumas horas para a meia-noite, mas ela preferia estar sozinha. Acompanhada apenas por uma garrafa de champanhe, sua bebida favorita. Na verdade, ela já estava se sentindo completamente só, a despeito da casa lotada, com direito a som e risadas altas. Era a festa do “amigo de um amigo”, não importava. A multidão não lhe agradava. Fugiu para um quarto nos fundos e olhava a janela, de onde via uma lua linda. Sentia saudades da família, de seus verdadeiros amigos e até uma nostalgia atávica de algo que não sabia bem o que era. Felicidade, talvez?

Fez uma careta de desdém por si mesma e sorveu lentamente o champanhe na taça fina e comprida. Sentiu as tais bolhas no nariz e o gosto gelado descendo pela garganta. Em vez da decantada leveza, sentia um peso enorme. Desconforto. Angústia.

Maldita época de fim de ano que evoca reminiscências e balanços da existência! Ela se sentia fora do lugar, tanto física quanto emocionalmente. Sua vida não era exatamente o que havia planejado e não conseguia se acostumar com isso. Por outro lado, também não sabia exatamente o que buscar. Tinha amigos, emprego, família. Deveria ser feliz, por quê não era? Faltava algo, ela sempre soube. E também sempre teve medo de pensar a respeito.

“Bobagem, isso!” – falou sozinha enquanto enchia novamente a taça. Iludia a si mesma com uma facilidade tão doce quanto o gosto do espumante. E a “bobagem” se transformava em tristeza mais funda. Nunca entendeu quem se dizia triste nessa época do ano. Gostava do clima de virada, das comemorações. Puro engodo. Enquanto parte de si vivia a festa, o seu verdadeiro eu jazia latente, insidioso, em busca de oportunidade para aparecer.

Não sabia o motivo desse desconforto. Lembrava de uma aula remota de Literatura na qual algum poeta ou escritor questionava o “eu-no-mundo”. Riu alto. Comparava-se a escritores e poetas, vejam só! Ela que era apenas voyeur das letras. Lia vorazmente, mas jamais se sentira capaz de escrever.

A garrafa de champanhe estava quase no fim e seus efeitos já se faziam sentir. A mente ligeiramente enevoada, as lembranças adquiriam um caráter onírico. Então, era isso? Bebia para fugir? Para esquecer? Não combinava com seu estilo.

Era mulher de ação. Essencialmente prática e racional, embora dada a devaneios de quando em vez. E a tristezas também. “Depressão”, alguém logo dizia – indicando o psiquiatra ou psicanalista da moda. Ela, gentilmente, sorria e desconversava. Preferia jogar para debaixo do tapete da alma essas inquietações. E se afogava no trabalho, nos amigos e no terreno pantanoso dos relacionamentos.

Enquanto enchia a taça novamente, seu pensamento foi interrompido pela porta do quarto se abrindo. Dela sai um jovem bonito, obviamente vestido de branco, com um belo sorriso nos lábios e uma taça vazia nas mãos:

“Onde você estava, meu amor?” – disse enquanto lhe beijava levemente os lábios.
“Aqui, pensando”
“Você pensa demais, não acha?”

Ela sorriu e sabia que ele tinha razão. Aceitou novos beijos. Beberam o resto da garrafa juntos, sempre fazendo o gesto clichê de entrelaçar os braços com as respectivas taças. Ele era sempre alegre, confiante e otimista. Contraponto perfeito para ela que, desconfiada, o achava bom demais para ser verdade.

“Chega de questionamentos”, pensou pela última vez consigo mesma antes de sucumbir às sensações. Ele gostava do jeito enigmático e misterioso dela. O resto, era pura química.

Beijaram-se com sofreguidão. A garrafa vazia de champanhe testemunhava o ato enquanto seu conteúdo servia de combustível para os amantes. A solidão e o desassosego se afastavam sorrateiramente por alguns instantes. Até o próximo ataque, já no Ano Novo.

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

(Caralho, eu tenho sempre q ser a primeira a comentar??????? XD)

Brincadeiras à parte, maninha, teu texto tá foda. Totalmente reflexivo, na tua melhor forma! \o/

E sabe o q tb é foda? O jeito q vc constrói a personagem. Parece q ela existe mesmo, até q a gente conhece ela. E q mala q ela é, hein????? Com um gato desses ficar se sentindo mal????? Fala sério! XD

E "Espada de Dâmocles" ficou perfeito!

Bjos bjos bjos!

5/22/2005 11:04 AM  
Blogger Maria Laura disse:

Eu diria que tem aí uns 95% de auto-biografia. Mas o que faz a gente se envolver não é o conhecer a personagem, mas como a coisa toda vai angustiando, exatamente como quando a gente começa a pensar, lá com aquela minúscula angustiazinha, vai pensamdo, pensando... e logo tem todo um circo de pulgas pulando atrás da nossa orelha.

Já disse o quanto esse texto foi importante pra mim? Não adianta, não vou conseguir fazer um coemntário técnico, estilístico, ou pretensamente imparcial. Só vou conseguir te agradecer pelo que esse texto fez eu enxergar, só von conseguir vê-lo no que ele tem de particularmente essencial nesse momento da minha vida.

Um texto impecável, como todos os seus, e pungente. Obrigada, Patita.

5/23/2005 1:37 AM  
Blogger Paty disse:

Só pra agradecer os elogios (amo vocês! :D) e mandar o link com a explicação sobre a fatídica Espada de Dâmocles:

http://www.bartleby.com/59/2/damoclesswor.html (em inglês)

http://www.minuto.poetico.nom.br/msg268.htm (em português)

Não gosto de explicar textos, mas acho que, nesse caso, o adendo se faz necessário. :)

5/29/2005 1:45 AM  

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