19.5.05

Resposta da Aline ao Desafio II

Réveillon


Abriu a geladeira, em busca de almoço. Frustrou-se. Estava quase vazia - apenas a garrafa d'água, um ovo, uma pêra madura demais, um resto de champagne do réveillon. Havia ainda um miojo na despensa; decidiu-se.

Estava sozinha. A outra saía antes do meio-dia, e voltava só quando já estava escuro. Era assim sempre, a rotina, e mesmo quando faltavam professores os horários não se alteravam (sempre há algo a se fazer na faculdade). Encheu a panela e o apartamento com o som da água e de um suspiro leve. Era mais um dia como outro qualquer.

Pôs a panela no fogo. Sentiu sede. Abriu novamente a geladeira, tomou um copo d'água. Seus olhos foram atraídos mais uma vez pela garrafa na última prateleira da porta. Como se fosse um gesto natural, trouxe-a para a bancada de mármore.

A outra não bebia, nem ela - não era por algum moralismo besta, simplesmente não agradava ao paladar aquele gosto áspero e quente do álcool. Mencionara esse pequeno detalhe durante as compras de fim-de-ano, mas a companheira não se convencera. Ora bolas, era uma tradição, ela argumentara, e afinal quando teriam novamente a oportunidade de encherem a cara?

Não encheram a cara na noite de ano-novo; cada uma bebeu duas taças, e foi o suficiente para que ambas apagassem no sofá mesmo, mal terminada a queima de fogos. Desde então, a garrafa, pequeno-burguesa e esnobe, jazia abandonada na porta da geladeira, trocada pela democracia gasosa da Coca dois litros.

Deu de ombros para o nada (ou talvez para sua auto-censura), arrancou a rolha e serviu a bebida num copo de requeijão com motivos floridos. O cheiro não era dos melhores; mas não era nenhuma conhecedora de champagnes, portanto arriscou um gole. Sentiu-o descer pela garganta com arrependimento e um certo desgosto. Ruim, avinagrado. Já fazia tanto tempo?

Largou o copo na bancada com um suspiro. A água fervia. Mergulhou nela o macarrão num gesto mecânico. Voltou a pensar no champagne.

Derramou sem hesitar todo o líquido amarelado ralo abaixo. Tinha sido barato, de qualquer forma. Mas o verde da garrafa era bonito. Lembrou-se da mãe, que gostava de fazer copos cortando a parte de cima das garrafas de vinho. Aquela ali serviria. Pensou, não sem um certo humor, que levaria mais cinco réveillons para ter um conjunto completo.

Ou talvez mais. Em tanto tempo, decerto já teriam quebrado um dos copos - por acidente, ou não. Ou desistido de vez daquilo. A verdade é que provavelmente não viria a fazer nem aquele primeiro, assim como não havia cumprido nenhuma de suas resoluções de ano-novo. Paz, paixão, fortuna, e o único pedido que persistia era aquela esperança inerte e preguiçosa...

O latido de um cachorro na vizinhança a fez acordar para a realidade da casa e da água que já havia evaporado quase por completo. Desligou o fogo, ainda um pouco zonza de tanto refletir, e voltou a pensar no destino da garrafa vazia. Sorriu, acariciando o gargalo sem grande malícia. Um arco súbito e decidido de braço, e o vidro verde se espatifou contra a borda do mármore, os inúmeros cacos colorindo o chão.

Pronto. Agora o ano podia começar.

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Catarticamente prosaico!!!!! E isso não é qqr um que consegue materializar em palavras! *_*

Parabéns, mana cinzenta! Mil beijos pra tua inspiração! ^^

5/19/2005 10:17 PM  
Blogger Paty disse:

Pura prosa poética tirada do cotidiano! Com destaque pra "democracia gasosa da Coca de dois litros". Gostei da reação inusitada da personagem quebrar a garrafa, numa espécie de batismo às avessas. Um ato de inustitada rebeldia para quem parece ser muito certinha. No mais, imagino a a cara da amiga ao chegar e ver os caquinhos pelo chão... :)

E já disse que essa moça é muito você, né? :)

5/20/2005 11:52 PM  
Blogger Maria Laura disse:

Será possível que esse Desafio evocou um alter ego de todas vocês, mocinhas, a ser personagem no texto?

Brincadeiras à parte. O estilo dessa crônica é muito mais leve e adolescente que o da do primeiro desafio. E é claro que isso faz parte da cabeça terceira-pessoísta dessa jovem pacata que precisa bater de frente com seus medos, suas inseguranças, e suas frustraçoes. Não duvido nada que ela mesma tenha escrito isso e passado pra você por debaixo da porta do seu Reino -ou teria ela entregue em mãos?

É leve. E ao mesmo tempo é angustiante. Apesar de ter um cerne muito triste, é inconformado. Acho que você devia prestar atenção nisso. às vezes, a resposta está naquilo o que você faz. É o caso deste texto.

Parabéns pelas imagens evocadas, pelos sentimentos despertados, e pela coragem desfraldada. É um poço de incerta esperança, e isso é tão paradoxal quanto tudo o que é de verdade.

5/23/2005 1:50 AM  

Postar um comentário

<< Home