25.5.05

Resposta da Liliane ao Desafio III

Haikai


Três.

Começou pela moça em um quimono de estampa vistosa, que chegara ali muito antes de qualquer um. Sozinha, procurou pela mais bela cerejeira. Instalou-se sob a árvore, ansiosa; seu peito parecia preste a rebentar, tamanha a saudade que encerrava. Preocupação, também, e angústia, e mais tantos outros sentimentos que ela mal podia compreender. Controlando-se, começou a preparar o chá verde que tomariam logo e, enquanto esperava a fervura, arriscou tirar alguns tímidos sons do shamisen.

Ele veio logo depois. Apesar do ar contemplativo, o perfume da gueixa e o aroma do chá o inebriavam, bem como o espetáculo em tons de rosa. Estancou junto ao tronco tão logo a última nota morreu, remoendo sua decisão - aquela poderia ser sua última chance. Ele não conseguiria partir sem fazer esse agrado à mulher.

Quando a terceira deu pelo fato, o cenário já estava montado: a jovem música observava os lábios entreabertos de seu companheiro, o olhar tão vidrado quanto o de uma estátua; ele, por sua vez, fora interrompido no instante que antecede a fala e agora, estático, sequer respirava. Nem mesmo o vapor que escapava da chaleira parecia disposto a se dissipar.

Naquele momento, o tempo parou; e assim permaneceria até que ela - até então uma discreta observadora - conseguisse tomar as rédeas da situação. Seu subconsciente já lhe entregara a cena de bandeja, tudo que precisava agora era escrever um haikai em nome do guerreiro.

Maldita a hora em que deu ouvidos àquela idéia.

Na escuridão do quarto, as lentes dos óculos ganhavam um brilho fantasmagórico graças à luz do monitor. Fazia sol naquele primeiro dia de primavera expresso em um arquivo .txt. E agora, inspirado por aquela perfeição inexistente, seu samurai imaginário decidiu brincar de ser poeta. Não, não era o caso. O rapaz descendia de uma família nobre e tradicional, sendo instruído não só no caminho da espada, mas também no das artes. Ele já era assim quando brotou em sua mente. Bravo, iria para a guerra, mas não sem antes declarar enfim seu amor pela gueixa. Mas era ela, a menina ocidental sem educação em caminho algum, a responsável pela poesia. E não poderia ser qualquer coisa - o momento exigia um haikai.


Afundou na cadeira, pensando na forma, na métrica. Cinco, sete, e mais cinco sílabas. Três versos, não tinha como ser tão difícil assim. Nos dois primeiros, uma mesma imagem, quase onírica, beirando a abstração pura. Se pudesse envolver uma cerejeira, tanto melhor. Já o encerramento seria uma quebra, um verso cru (e não por isso menos poético), com a ilusória ausência de laços com o restante. Pronto, estava feito seu haikai do mundo das idéias. Tudo que tinha a fazer era encontrar as palavras.

Releu os parágrafos iniciais, ainda que não precisasse. Nunca tivera nada além de envolvimentos breves, mas de alguma forma ela sabia exatamente o que aqueles dois sentiam. Quanto mais refletia, maior era a dor em seu coração, o nó em sua garganta, o formigamento nas pontas dos dedos, que testavam as teclas, hesitantes. Subitamente, descobriu ser um rapaz tímido apaixonado pela mais linda de todas as gueixas e, ao mesmo tempo, uma garota que amava com todas as suas forças um garboso samurai. Ela morreria para não perdê-lo, e ele estava disposto a matar tropas inteiras para voltar para ela.

Três versos.

Nem em sonho dezessete sílabas dariam conta. Só a cerejeira já tomava três ou quatro! Naquele passo, nem se fosse caso de epopéia.

Aquilo era uma despedida, talvez definitiva: um haikai, um último beijo, mares de angústia. A poesia daquela tarde primaveril era essencialmente triste, mesmo para quem vivia uma chuvosa noite de outono. Não havia beleza ali; somente um momento que prometia ser o mais doloroso das vidas daquele casal sem nomes, perdido nos confins do feudalismo.

Três.

Foi então que entendeu qual era seu papel. Respirou fundo, e passou a digitar furiosamente.

No fim das contas, ele não recitou haikai algum. Observando a gueixa quase abraçada ao shamisen, resolveu que aquele era seu lugar, e guerra nenhuma o tiraria dali. Os dois casariam, teriam filhos e os pequenos aprenderiam a fazer música com a mãe. Ele poderia sustentar a família dando aulas de kendô. Quando a primeira pétala caiu, ele já estava decidido.

Ajeitando os óculos, a menina sorriu, satisfeita com o resultado.

Estava feita a poesia.

7 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Lindo lindo lindo!!!!(fazendo jus à minha mania) *_*

Adorei a mudança repentina na narrativa e a angústia da menina com a forma. Aliás, ela é vc, num é?

Bjos bjos bjos!

5/25/2005 11:51 PM  
Blogger L. disse:

E, pela primeira vez (é a primeira, não?) eu venho comentar um texto meu. Na verdade, responder a um comentário, e rapidinho.

Sabe que ela não é, Mari?
Eu chego até a me identificar com ela - entendo o drama da menina e tudo mais. Agora, no fim das contas, não, não somos a mesma pessoa.

(E valeuzíssimo pelos elogios!)

5/26/2005 1:45 AM  
Blogger MôNiCa disse:

A narrativa é fascinante! Aquela coisa de mergulhar no conto q a menina está escrevendo, pensando que é o seu proprio conto e depois ver que aquilo era somente o q a menina estava escrevendo! Demais isso...vc é remetido p/ dentro do conto q um personagem está escrevendo...fascinante!
Não preciso dizer q é lindo, fofo e perfeito! Parabéns!
Mil bjocas

5/26/2005 11:54 PM  
Blogger MôNiCa disse:

Ah...esqueci de dizer! A poesia não está somente no q a menininha está escrevendo, mas sim na própria atitude do guerreiro! Lindo!
Bjs

5/26/2005 11:55 PM  
Blogger Paty disse:

Gostei *muito* da narrativa desse texto. Estou lá muito bem no Japão feudal quando sou tragada pela realidade: é a moça escrevendo um conto. Metalinguagem das boas!

Dá pra sentir a angústia da autora com os rumos da história, retratando bem o duro ofício de escrever e como os personagens tomam o rumo de suas vidas em um dado momento. E a poesia na atitude do samurai é a cereja do sundae.

Mandou bem de novo, maninha! :)

5/28/2005 11:36 PM  
Blogger Maria Laura disse:

Sentir-se um deus, arbitrando sobre a dor e a felicidade de duas pessoas que nem sabem que você existe. O mérito do teu texto é essa angústia pigmaleônica de alguém que se sente fazendo alguem rir ou chorar pela eternidade conservada de um texto que não se apaga.

Sim, a forma é interessantíssima, o vórtice narrativo que arranca você do Japão feudal a um computador e olhos não-amendoados é uma linda sacada, a oposição entre a tensão romantica formal da cena e o nervoso sarcástico da escritora é um achado... Mas a idéia é, sem dúvida alguma, a coisa mais perfeita nesse texto. É emocionante. E ao fim da leitura, a gente se sente feliz pelos três, como se cada um de nós tivesse escrito aquilo tudo.

Maravilhoso, filha. Além da frieza descritiva. Parabéns.

5/29/2005 5:56 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

O amor de uma gueixa
O samurai sem espada
A autora que trava

Haikai improvisado agora em sua homenagem, gêmula! :D

Enfim, você merece o título de gênia pelo simples fato de adequar o texto ao padrão de versos do poema japonês.

8/01/2005 7:25 PM  

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