24.5.05

Resposta da Priscila ao Desafio II

Tédio, tédio, tédio, tédio, esperança. Tédio, tédio, tédio, tédio até não acabar mais, esperança. A estes pequenos momentos cíclicos se resume minha existência perene. Acho que o destino está tirando sarro da minha cara. Acho, não, estou absolutamente certa disso! Sei que nasci para brilhar, e vou brilhar, mas para que o destino cumpra seu papel, tudo que preciso é de uma mãozinha, só isso. Amigas tão perfeitas quanto eu não me faltam, mas considerando que suas maiores perspectivas de vida incluem desde caminhar rumo à eternidade como chongas em algum cortiço suburbano até serem impiedosamente destruídas pela força de um barangão mal encarado e metido a poderoso, creio que lhes falta um tanto de ambição.

Ah, perdoem-me, jovens, este primeiro parágrafo desconexo. Talvez vocês estejam a léguas de distância em suas apostas sobre a minha identidade. Permita-me, portanto, que me apresente: bem, não ostento nome de batismo, mas todos me conhecem como garrafa. Mas não uma garrafa qualquer, daquelas que você compra num boteco pé-sujo de esquina e depois devolve, como uma puta retornável. Sou uma legítima garrafa de champagne, fabricada na lindíssima e distintíssima região francesa de Champagne. Meu sonho é fugir daquele velho clichê lascivo e libidinoso ao qual minhas distintas companheiras sempre estarão associadas. Quero mesmo é entrar para os anais da história das garrafas como aquela que percorreu um caminho nunca dantes navegado.

É... acho que consigo ler o pensamento de vocês: como pode uma mera garrafa conseguir se expressar? Garrafas não têm alma, não pensam! Pois é aí que vocês se enganam, caros humanos pensatóides. Estes conglomerados de matéria bem-moldada que vocês costumam chamar de livros, mesas, chinelos e bibelôs de R$1,99 têm todos uma personalidade; afinal, são seres: e seres raciocinam. Troco mensagens e experiências com todas as minhas companheiras, e também com portas, prateleiras e armários por onde passo. Só não levo papo com humanos: esses bichos herméticos que, no topo de sua pretensa ignorância, crêem-se os únicos laureados com o poder de pensar. Ainda bem que nem tudo está perdido, pelo menos vocês já sabem que os bonecos das crianças levam uma vida independente, como ficou registrado no filme Toy Story – o meu preferido. Mas basta desse assunto, não vos escrevo por isto.

O que quero é expressar minha canseira em relação à morosidade na qual se transformou minha vida. Nada acontece, e se as coisas permanecerem assim por mais cinco anos eu explodo de desespero! Mas, êpa, peraí. Quanta coincidência! A porta da adega acabou de abrir. E quem entra? Olha só, uma menininha, a filha do meu dono. Jovem criaturinha pré-adolescente, o que você veio fazer por aqui? Me pegue, me pegue, se for para fazer um estrago. Quero aparecer na mídia, jazida como coadjuvante, sob a manchete dos jornais populares: “Menina de treze anos morta por overdose de álcool”, ou “Menina de treze anos detida por portar bebidas alcoólicas”. Que sonho. Me pegue, queridinha, agora! Uni-duni-tê e... eu fui a escolhida. Sabia.

Agora estou caminhando, minha nova dona me carrega correndo, sorrateira, passa pela sala-de-estar e chega na cozinha. Sou colocada num saco preto. Correria, não vejo mais nada. Entro numa bela casa. Porteiro, portão ornamentado, piscina, porta maciça, sala. Vejo um menino adolescente. Quinze anos, talvez... a menina parece nutrir uma paixão secreta pelo rapaz; suas expressões denunciam tudo:

_ O que você faz por aqui – ele perguntou.

_ Vim te fazer uma pequena surpresa...

Tá, não precisa fazer muito esforço pra adivinhar, a surpresa sou eu. E então a menina lhe entrega, de rosto corado e olhar vacilante, o presente. Os olhos do rapaz brilham como jabuticabas maduras. Esforçam-se um pouco (a falta de prática adolescente é perdoável – afinal, tudo indica que um final nada feliz está para acontecer), mas celebram com gritinhos animados a vitória de terem conseguido arrancar a minha companheira rolha. Bebem em goles apressados todo o champagne, e em menos de cinco minutos me abandonam completamente vazia e solitária. Os efeitos do álcool, em organismos jovens e jejuados, se manifestam em uma intensidade extremamente forte e arrebatadora. As crianças estão loucas, meu Deus!

Agora elas me levam para o quarto. Sussuros inaudíveis são trocados pelos dois pombinhos. Então decidem pelo ambiente à luz de velas, e eu, despida e célebre, porto-me imponente em meio a esta atmosfera afrodisíaca. Dois adolescentes prestes a iniciarem suas vidas sexuais, e eu aqui, a observar tudo, placidamente. Trocam mais sussurros e começam a se despir. A menina, ainda corada, parece não querer, mas a insistência do rapaz a faz desistir de impor qualquer resistência. Gargalhadas ecoam, altas. E consigo ouvir uma movimentação estranha do lado de fora. Peraí, a porta está abrindo! Dois adultos invadem violentamente o quarto. Um, consigo reconhecer, é meu dono. Outra, uma mulher, deduzo que seja a mãe do menino.

Ouço atenciosamente a conversa. O pai conseguiu notar minha falta a tempo e, desesperado, telefonou para sua vizinha da frente, que confirmou a presença de sua filha na casa. Os dois, então, chegam a tempo de interromperem as preliminares.

_ Quem a autorizou? – pergunta, a voz carregada de fúria e desespero, o pai.

_ Mas, pai, eu, eu... – gagueja a menina, inerte e nua, enquanto seu amigo a cobre com uma toalha.

_ Você nada! Vai ficar um mês trancafiada em casa, sua piranha juvenil. Vê se tem cabimento! Já sei, vou te matricular num internato de freiras, isso sim. Te prepara, dondoca.

E a menina sai, chorando, puxada pela orelha, enquanto o rapaz é contemplado pelo olhar benevolente da mãe. Não tem jeito, meninos sempre serão mais bem compreendidos...

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Porra, preciso comentar algo???????

Sem palavras pra esse texto... Ele é muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito foda, ultrapassa os limites de qqr coisa q possa ser classificada como criativa! Adoro o ar sarcástico da garrafa e a maneira como ela fala com o leitor. Sem contar q o primeiro parágrafo engana bem, parece q é uma mulher falando de suas amigas. XD

Parabéns, Nuala. Começou com dois pés direitos nas Trovadoras de Minerva!

5/25/2005 12:25 AM  
Anonymous Anônimo disse:

Ah, gostei tbm! Muito legal.Tah de parabéns! Vc escreve muito bem, não precisava ficar com medo de a gente não gostar. Um bjão.

5/25/2005 6:05 PM  
Blogger Paty disse:

Esse me surpreendeu muito! Jamais pensei que alguém fizesse o ponto de vista da garrafa. E que garrafa simpática, diga-se de passgem! Bem-humorada e observadora mordaz dos humanos. O primeiro parágrafo nos faz pensar em uma mulher thirtysomething estilo Sex in the City. O segundo, machadiano até a medula, desfaz a impressão com estilo.

E bota estilo nisso, adoro o senso de humor particular presente em expressões como "putas retornáveis", "as crianças estão loucas, meu Deus" ou "piranha juvenil". E o clima de conversa com o leitor é ótimo.

Texto leve, divertido e cheio de sarcasmo. Não tinha como eu não gostar, né? :) Como disse a Mari, começou com os dois pés direitos!!!

5/28/2005 11:28 PM  

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