26.5.05

Resposta da Patrícia ao Desafio III

Cheguei em casa cansada. Tinha sido mais um dia cheio: curso, faculdade, academia. Tomei banho, jantei. Sentada à frente do micro, adiantei um pouco do trabalho de tradução até decidir abrir um novo documento no Word. Zilhões de coisas na cabeça, mas estava decidida a começar. Tinha um desafio a cumprir. Não sabia exatamente a forma. Vou deixar por conta do acaso. Bom, a idéia não era escrever sobre alguém escrevendo uma poesia? Então lá vai:

Como definir o fazer poético?
Transformar-se em outros num esforço mimético
Ou compreender a si mesmo num esboço profético?
Eis que digressiono e o resultado é patético

Nem um pouco otimista, mas compatível com meu estado de espírito. Lembrei então que tinha alguns trechos inacabados sobre o mesmo assunto. Como esse:

Ser Poeta
É sentir em si todas as dores do mundo
Ou querer isolar-se num sono profundo
É se extasiar com a corte celeste
Ou se ver acordado pela inspiração inconteste
Ter ânsias de escrever em lugares inusitados
E quase errar o ponto divagando sentado

É... Legalzinho. Mas obviamente falta algo. Tentei mais um pouco:

Mas não sei se sou poeta
Brinco com palavras
Danço com elas em frases de árdua lavra

Não desenho ou pinto,
Prefiro colorir com as palavras
As brutas palavras pelas mãos lapidadas

Por isso escrevo
Com as letras me atrevo
Tirando delas flashes em relevo
Amontoados, em caótico cortejo

Um pouco melhor. Torci o nariz mesmo assim. Pombas, será que não ia conseguir fugir da batida metáfora parnasiana comparando o fazer poético a um trabalho de artesão ou ourives? E, pra complicar, esse trecho meio que contraria o anterior! Merda, estava vendo que ia falhar miseravelmente no desafio. Subitamente, surge a sensação de que havia mais alguém no quarto. E antes que eu pudesse confirmar a impressão, uma voz jovial diz:

- Ah, tá ficando maneiro!

Pulei na cadeira de puro susto. Afinal, estava sozinha em casa! Não mais. Olhei para trás e não acreditei no que via: uma inconfundível garota gótica em pé atrás da cadeira, lendo por cima dos meus ombros! Vestida de preto da cabeça aos pés, coturnos lustrosos embora meio surrados, jeans também não muito novos. Camiseta, cabelos curtos, pele inacreditavelmente branca, rosto perfeito além de qualquer descrição, olhos negros como jamais se vira - realçados com lápis, delineador e um desenho pendendo do olho direito parecendo um gancho. E um ankh imenso no pescoço.

Ok, não podia ser. Por uma série de motivos. Tive a presença de espírito para perguntar:

- Peraí, o que raios você tá fazendo aqui? Não faz sentido! Estou muito bem de saúde e, apesar da total ausência de inspiração, não pretendo me jogar da janela!

Ela abriu o sorriso mais perfeito do universo e disse:

- Na verdade, você já se jogou. Num certo poema feito semana passada...
- Ah, nem vem! Aquilo ali era o meu eu-lírico! Eu pulei metaforicamente!

Num gesto inusitado, a garota aperta minhas bochechas:

- Ficou enfezadinha! Ah, que bonitinho!

Desconcertada, tive que admitir:

- Taí, isso foi fofo.

E caímos em risos pelo que parecia uma eternidade.

- Mas afinal, o que você faz aqui?
- Eu gosto de você!
- Fico lisonjeada, mas... você gosta de todo mundo!
- Ok, tem razão. Bom, você já fez um poema pra mim e achei bonito, então decidi retribuir ajudando no seu.
- Jura? Então vamos lá! O que eu faço?
- Ah, não é bem assim..
- Como não? Você não veio pra me ajudar?
- A minha presença aqui já é a ajuda: “Toda moeda tem dois lados”...
- Ei, a frase do Destruição!
- Exatamente!

E ela sentou-se na minha cama. Pegou o Garfield de pelúcia e começou a brincar alegremente enquanto assoviava alguma música de “Mary Poppins”. Eu queria falar muitas coisas, mas a vontade de escrever veio com força total, superando até a minha notória curiosidade. E sai mais uma estrofe:

Se o objetivo é escrever uma poesia
Em vez de esperar a distante epifania
Mais sábio observar quem te acompanha todo dia

A moça, agora abraçada com o Snoopy de pelúcia, deu pulinhos de alegria ao ler o que estava escrito:

- É isso aí! Finalmente pegou o espírito da coisa! Já estava começando a achar que você era meio lesadinha que nem o meu irmão.
- Pô... Zoa, mas também não esculacha! Me comparar com o mané-mor é sacanagem!
- Mané-mor... Gostei disso! Assim como gostei do poema.
- Mas peraí, ainda não acabou!
- Ih, sinto muito, mas tenho que ir nessa. Muito trabalho, cê sabe, né?
- Sei, sei... Pô, eu tinha tanta coisa pra perguntar.
- Não esquenta. A gente vai se ver de novo, sem dúvida.

E desapareceu ao som do ruflar de asas. Não demorou muito para perceber que a outra estrofe escrita na presença dela terminava, sim, o meu poema. E era a seguinte:

E diante da inusitada visita,
Deu-se a conclusão devida
A súbita aparição não fora de todo descabida
Afinal, qual não é a inspiração
De toda e qualquer poesia
Senão o breve momento,
Que costumamos chamar de vida?

4 Comentários:

Blogger Mariana disse:

...
CARALHOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!! *_______________________________*

É teu melhor, sem dúvida!!! Apoteótico!!!!!!!! Mil desculpas, maninha, mas nem vou comentar nada, nenhum comentário que eu fizer vai estar à altura!

Milhões de beijos extasiados!!!!

5/26/2005 10:56 PM  
Blogger MôNiCa disse:

Com certeza, o seu melhor até hj! Mto mto bom! Sem comentários tmb (concordo plenamente com Mari!!!)

5/26/2005 11:48 PM  
Blogger Paty disse:

Engraçado. Não vejo grandes arroubos criativos no texto. Mas foi a coisa mais divertida (e fofa!) que já escrevi. Gostoso mesmo de fazer. Talvez isso tenha se refletido nele e gerado reações tão positivas.

E, graças a vocês, Trovadoras, gosto mais desse modesto escrito a cada vez que releio. (Até porque finalmente consegui fazer a celebração da vida que era pra ter saído no primeiro desafio!) :)

Valeu, povo! Amo vocês todo dia! :D

5/29/2005 4:43 PM  
Blogger Maria Laura disse:

...
...
...

OK, o que mais você esperava? Não sei de onde, de que bizarro recôndito da sua autoclasta mente você tirou o adjetivo "picareta" pra definir esse texto. É um texto fofo? Só pela fofa mãozinha de mestre Gaiman. O significado por trás dessa linda menininha gótica e saltitante não podia causar mais calafrio e excitação no leitor. (Sem contar que você e ela estão muito iguais!)

Sem contra que você realizou um desafio três em um! A parte prosa eh uma realização, a parte verso é outra, e a união das duas é o equilíbrio total, é a moeda de dois lados!

Chamar esse texto de picareta é uma heresia. A Morte ia ficar muito zangada se ouvisse. Era capaz até de sequestrar seu Snoopy por conta disto... Think about! ;o)

5/29/2005 5:35 PM  

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