29.5.05

Resposta da Maria ao Desafio III

Encostou silenciosamente a porta, com medo de ser flagrada em plena execução do crime que estava preste a cometer. Com um sorriso de ansiedade, quase inibido, abriu a janela e sentou-se à escrivaninha, pondo o copo de leite diante de si. Da caixinha lilás, escolheu o lápis mais longo e fez-lhe a ponta caprichosamente. Pousou-o com cuidado à sua direita, paralelo à borracha e ao apontador, num arranjo místico. Pensando bem, puxou a lixeirinha para mais perto: intuiu que aquela tarefa lhe exigiria muitas pontas. Por fim, com a sensação de ter superado o vestíbulo de um ritual, abriu o caderno numa página em branco e deitou-o no centro da escrivaninha.

Enfim, a folha intocada. Por um instante, a menina contemplou, inerte, a servil virgindade pautada: sentiu um frio na barriga. E num instante, toda a torrente criativa que trovejara até então se aquietou. Não sabia por onde começar. Será que era assim que sucedia com todos aqueles poetas que ele lhe apresentara? Será que isso também acontecia com ele?

Duvidou. Ele era sempre tão certo, falava das poesias com tanta autoridade e segurança, revelhava-lhes os segredos com tanta destreza... Não era possível que ainda houvesse algo naquele mundo que ele não dominasse. Nem mesmo aqueles bilaques, vinícios e alencares podiam conhecer a poesia como ele, ou mesmo falar dela como ele, ela ousava cogitar.

Ele. Como de costume, fora ele a lhe trazer a resposta, assim como fora ele o motivo da dúvida, o motivo de tudo nos últimos tempos, a poesia em forma humana. De repente, notou que era dele que tinha de partir. Tomou coragem: com um gole de leite, pegou o lápis e tentou a primeira linha. Parecia boa. Fez outra. Dois versos. Faltava Algo. Faltava rima. Que é que rimava com "corredor"? Amor? Dor? Calor? Ora, mais que bobo, ela pensou, esfregando a borracha vigorosamente contra o papel, como se quisesse apagar o tempo. Precisava de uma rima melhor.

Resolveu mudar o primeiro verso: agora sim, teria rimas melhores. Ficou satisfeita com a primeira rima. Parecia com uma que ele mostrara numa das primeiras aulas, a que só ela prestara atenção. Seus colegas, ainda eufóricos com a volta das férias, em desordenada desatenção, não viram a mão robusta escrever do poeta que fingia. Ela gostava da rima, mas agora que era, ela mesma, poetisa (será que já se podia chamar assim?), discordou: não mentia! Escrevia para que ele soubesse o que era verdade, a verdade dela! Acaso isso não era poesia?

Resolveu deixar claro que não era uma fingidora. Mas, para evitar que ele achasse que era também isto uma mentira, preferiu fazê-lo depois, num pê-esse ou algo que o valesse, não no seu poema. Até porque, tinha tanto a dizer que não caberia num poema (o que a fez lembrar-se de que, na aula seguinte, perguntaria o quão grande podia ser um poema): por ora, era melhor se preocupar com o essencial. Talvez depois, se ele gostasse, ela lhe escrevesse outros. E certamente os quereria escrever, mesmo que ele jamais os visse. Afinal, o poeta continua a ser poeta, mesmo quando está triste, mesmo quando sua amada não o quer. É assim que são os poemas, é assim que são os poetas, é assim que ele ensina a ela, não é mesmo?

Mais algumas horas, mais algumas dúvidas, mais algumas rimas, mais algumas pontas. O poema estava pronto. Fez seu pê-esse, envelopou o escrito e o pôs na mochila, para anonimamente depositá-lo no escaninho dele, no dia seguinte. Satisfeita. Sentiu-se diferente, como se tivesse subido uma escada e entrado num mundo novo. Ela ainda não o sabia, mas isto era verdade: uma nova fase, uma nova idade, o fingir sem volta.

4 Comentários:

Blogger Maria Laura disse:

OK, vou me dar o direito de comentar meu próprio texto (mas prometo que não faço mais!); só porque preciso dizer que esse desafio me deixou contente e frustrada.

Tive uma série de boas idéias para ele... Mas não consegui executar nenhuma delas. Faltou "maturidade literária", segundo disse à meninas na reunião do Círculo (quem sabe alguns saramagos não me libertam?). A idéia que executei não é, nem de longe, a melhor, e nem ficou a contento. Mas depois de lê-la no Círculo, gostei dela bastante mais do que a princípio. Bragadão, Trovadoras.

5/29/2005 4:21 PM  
Blogger Paty disse:

Pra mim, a paixão pelo professor é secundária. Esse texto é uma bela declaração de amor pelas letras, pela poesia. Muito boa a idéia de retratar o início da vida poético-literária da garota. Que deve ter sido "longa e próspera": convehamos, alguém que se recusa a rimar amor com dor ou calor merece crédito! :D

Bem retratada a angústia do fazer poético. E a personagem cresce e ganha segurança ao longo da narrativa. Concordo plenamente com a idéia de que escrever muda as pessoas (e como!).

Ah, e alguém diga pra moça que o poema pode ter o tamanho que ela quiser... (Ilíada, Odisséia e Os Lusíadas, alguém? :D)

Como assim, não gostou? Ficou maneiríssimo, maninha! :)

5/29/2005 4:36 PM  
Blogger Mariana disse:

...
Porra, imagina quando tiver a tal "maturidade literária"????????? Aí vc será inatingível! XD

Amei! Amei! E amei! Plagiando a Paty, tb acho q a paixão pelo professor é secundária e q a paixão poética é o q tá aí. Tb adorei a escolha da perspextiva do desafio, o início da viagem sem volta da menina pelo mundo da poesia. Como todo "crime", a poesia é algo que não expira jamais, heheheheheh.

Bjos bjos bjos, maninha!

5/29/2005 9:40 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Mais do que paixonite aguda, eu vejo na menina uma admiração especial por esse professor que mostrou para ela esse caminho dolorosamente maravilhoso das letras...

Se ela realmente decidiu seguir a caminhada, aposto que se tornou um belo talento! Mesmo sem ter lido a poesia, dá pra sentir que ela teve um bom começo...

Adorei a citação a Pessoa. ^^

(... E é só comigo, ou a cada reunião das Trovadoras nós temos um número maior de idéias pra resposta? :D)

5/29/2005 11:34 PM  

Postar um comentário

<< Home