31.5.05

Resposta da Liliane ao Desafio IV

Monólogo


Sem um pingo de dignidade: é assim que você sempre age.
Mas a culpa é minha, sem dúvida; eu é que nunca me dei ao respeito, com essa minha índole relapsa. Dia a dia, alimentei seus vícios, permitindo que essa ávida sombra de mesquinhez crescesse, até nos envolver por completo. Por um lado, seus discretos pecados e, por outro, eu, o eterno penitente, pagando por crimes que não cometi.

Dramático, como de costume. Você sabe, nasci para a ribalta. Mas os espetáculos, garanto, são particulares - ao menos os mais intensos.

Vê? Já ia me esquecendo. Isso deveria ser uma reprimenda, minha cara, e outra vez - a última - esse seu rostinho bonito me fez perder o rumo. Ousaria dizer que noto aquele seu indefectível não-sorriso passando brevemente pelo seus lábios. (Eu sei, é impossível, mas você sempre foi capaz de manter a lógica num raio de dez quilômetros de distância.) Basta vê-la assim, iluminada somente por velas, que involuntariamente deixo tudo mais de lado, quase sucumbindo à vontade de sussurrar em seu ouvido o quão linda você fica à meia-luz.

(Vai, pode rir.)

Enquanto as sombras brincam de sumir e ressurgir entre as mechas do seu cabelo, percebo o quão simbólica é a imagem. Afinal, assim é você: uma criatura cheia de nuances, idéias e sentimentos em mutação eterna, como um caleidoscópio. Com o mesmo inesgotável encanto do instrumento, por sinal. Paixão esfuziante num momento, morna letargia logo depois. Camaleão incansável, capaz de recriar o mimetismo. Nunca se adaptou ao ambiente; ele que tentava mudar por você, desesperada e constantemente. Como isso não acontecia jamais, sua principal marca era uma desconcertante aura de sedutor transtorno. De forma alguma você é uma pessoa preto-no-branco, muito pelo contrário. Digo e repito, está para nascer alguém tão complicado quanto você.

Quando dei por mim, já tinha mordido a isca.
(Otário.)

Mas é seu egoísmo o assunto ao qual devemos atentar. Isso porque, sentado cá ao seu lado, eu me sinto o mais solitário e miserável dos seres, enquanto você, no ápice de seu egocentrismo, se mantém deitada nessa calma inabalável. E bem que me esforço para sentir raiva, ódio, desprezo, mas não adianta. Sem sequer se mover, você vence, me conquista, faz de mim um trágico pierrô mal-ajambrado. Você, adorável colombina, prefere dançar com esse negro arlequim.

Como eu queria ser tomado por um ímpeto destrutivo e, num arroubo de insanidade, estapeá-la, despetalar essas flores todas, acabar com esse cenário maldito. Tudo que eu consigo, no entanto, é me embriagar com o seu perfume.

Minha companheira de cena que me ensinou a arte do improviso; eu desisti de mim mesmo e passei a seguir você. Agora você, ingrata, me deixa sem base. E eu, o rei dos tolos, o grande bufão, acato suas ordens. Feito cachorro sem dono, eu fico aqui, pequeno, querendo um afago que sei que não virá.

Eu cedi a cada um de seus delicados caprichos sem reclamar, sempre deixando minhas queixas para depois. Se eu tivesse dito qualquer coisa, talvez você tivesse parado para pensar em mim, ao menos uma vez - ao menos essa vez.

Vergonha das vergonhas, alcanço o cúmulo do ridículo e procuro em seus lábios a resposta que não queria ter jamais. Na sua boca fria, a confirmação dolorosa, o beijo de mão-única tão distante daqueles em que me viciei. Um último, porque você, egoísta, ousou me deixar sozinho.

Fique cá, bela adormecida, com as flores que seu funesto amante trouxe. Que o ato final venha sem mim.

Podem fechar as cortinas.

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

CARALHOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!

Na boa... TÁ FODA!!!!!!

Tenho muita pena do teu personagem... Sério, a agonia dele de ter ficado sozinho sem sua amada dói até em mim. E a maneira q vc constrói essa agonia é a mais foda possível, recheada de metáforas e cheia de humor negor, passando a léguas da pieguice fúnebre.

Horrorshow horrorsow horrorshow! XD

5/31/2005 1:03 AM  
Blogger MôNiCa disse:

É incrível a capacidade do seu personagem de fazer uma bela auto-crítica!!! E a questão é que, na verdade, a culpa não é dele: é dela.
Esse txt é mto intrigante. O eu-lírico se condena pela menina ter morrido, mas no fundo, ele a condena. E, o mais fascinante é que vc entende o ponto de vista do personagem: apesar de parecer confuso, vc acha perfeitemente possível, pq as contradições são inerentes aos homens!
Outra coisa: ele sofre por ela, ele se condena, ele a condena e sofre por isso...lindo!
Parabéns, Lili...sou sua fã, vc sabe!
Bjinhos

6/05/2005 3:11 PM  
Blogger Paty disse:

Esse cara é muito "drama king", né não? Vide as metáforas teatrais! :) Confesso que demorou a cair a ficha da primeira vez que li o conto e, quando fui devidamente informada, fiquei pasma. Nessa segunda leitura, o pasmo se manteve e o texto ganha um novo sabor, graças a essas múltiplas camadas de interpretação. Impressiona como você sabe envolver de modo a fazê-lo pensar que se trata apenas de mais uma separação: uma garota que deixou um cara. Well, não deixa de ser isso, mas de uma forma bem menos convencional.

Gosto da auto-ironia, do humor depreciativo e da forma como a revolta do personagem vai crscendo durante o texto. E o beijo com aura de necrofilia também passa longe do convencional. Uma história de amor pra gótico algum botar defeito.

[injoke] "negro arlequim"? Taí, já me chamaram de muita coisa, mas essa foi nova! :D [/injoke]

P.S: Achei a resposta da moça morta numa letra do Evanescence. Confira em "My Last Breath".

6/06/2005 12:17 AM  

Postar um comentário

<< Home