31.3.06

Resposta da Aline ao Desafio IX

Vivo um terrível dilema, minhas caras. O leitor desavisado talvez não entenda meu drama, mas decerto as colegas trovadoras serão capazes de reconhecer alguns dos dissabores que aqui narro, tendo passado por situação semelhante. Digo "semelhante" agora; obviamente não foi o que pensei ao abrir o infame papelzinho que selaria meu destino quatro longos meses atrás. Confesso que considerei a minha missão mais trabalhosa que a de vocês, e creio não ter sido uma simples propensão à tragédia de minha parte: pois, para uma reles aprendiz de comunicóloga, que desafio poderia ser maior do que imitar uma literata?

Querem mais argumentos? Eu os tenho: graças à minha sorte distorcida, escolhi às cegas uma criatura impiedosamente sincera, justamente aquela que, tendo eu por fim cumprido esta árdua tarefa, não teria pudor algum em coçar a cabeça e dizer "tá uma merda". (E nesse caso eu, das profundezas de meu ego, jamais poderia discordar.)

Mas acreditem, não é ainda aí que reside meu maior problema - ou, talvez vocês queiram acreditar, a coisa mais próxima de solução que eu poderia ter. O fato é que, ao deparar-me com aquelas duas palavrinhas em Bic cor-de-rosa, descobri que minha miopia social é ainda maior do que pensava. De que outra forma explicar minha incapacidade em formular uma frase sequer sobre a pessoa em questão, justo aquela que eu já conheço desde éons pré-cambrianos?

(Certo, metade do parágrafo anterior não passa de uma grande lorota. O que eu realmente pensei em altos brados ao conhecer minha sorteada foi "Homessa! E agora?")

Pois bem, era nesse mato sem cachorro que me encontrava (e que, de certa maneira, ainda me encontro enquanto escrevo). Sabia desde antes do ponto de partida que a homenagem jamais estaria à altura da presenteada. Já começava a avaliar as possibilidades de uma carta de despedida e um bom pedaço de corda, quando me veio um fiapo de idéia. Não lhe dei grande importância; não, era uma besteira, uma bela picaretagem com uma ou duas expressões espirituosas. Mas não conseguia pensar em mais nada.

O tempo, este maravilhoso algoz, passava e nenhuma resposta me surgia. Por vezes a tal idéia chinfrim emergia, com a pompa britânica de um passageiro da primeira classe do Titanic; levantava bem alto seu imaginário nariz e desafiava: "por que não te rendes, és incapaz de coisa melhor". Eu, o orgulho ferido mas não acamado, chutava-lhe a bunda sem titubear.

Pois eu era obstinada, e estava decidida a fazer algo do agrado da companheira de longa data. Pus-me a ler e reler todos os seus textos, investigando palavra por palavra, construção por construção; passei a acompanhar com os olhos cada um de seus gestos largos, na esperança de dali arrancar a essência de sua personalidade - fosse um jogo de criança, eu acumularia os papéis de vítima e detetive. Cada vez mais concluía que, quanto maior o tempo de convivência, menos se conhece uma pessoa; e talvez até haja uma lógica torta nisso, pois o convívio apaga os estereótipos, torna insuficientes as descrições, cria tons de cinza onde a princípio há apenas preto e branco. Muito mais simples e menos frustrante definir um estranho com um punhado de palavras.

Nesses meus momentos de conflito psico-filosófico, voltava a tal idéia. Agora mais modesta, me abordando com certo respeito, propondo acordos. Analisei-a novamente com mais calma, e ela me pareceu até divertida; mas ainda estava crua - o final era bombástico, o início razoável, o meio decepcionante. Sabia que não me restava muito tempo. Chegamos a um trato: não surgindo nada melhor, seria ela mesma, com um bom banho de loja havia de servir.

Eu não me rendia. Vasculhava a memória em busca de anedotas nossas; eram muitas, mas nada me deixava satisfeita. Já no último mês de prazo me veio algo mirabolante e excepcional envolvendo narrativas num futuro próximo, mas não precisei de muito para estampar "INEXECUTÁVEL" na capa do projeto (mesmo porquê, sempre fui péssima em previsões). Volta e meia me acometia o mal que atacara a mocinha do Desafio III - vinha-me todo um turbilhão de idéias brilhantes, que desaparecia tão logo me sentasse na frente da tela do computador. De quando em vez ia eu conferir de novo o papelzinho amassado (ainda o guardo), só para ter certeza de que a elegante caligrafia não me enganara. Foi preciso chegar ao cúmulo de ouvir da boca da própria criatura uma sugestão de título para o texto, título este que eu propositalmente ignorei, para que eu finalmente desistisse.

Lá me veio a ideiazinha, desnutrida e maltrapilha, puxar-me a beira da blusa: "me escreve, me escreve". Ainda relutei, temia o resultado final, considerava minha obrigação moral oferecer algo apresentável às Trovadoras. Foi às vésperas do dia marcado que me dei por vencida. Acenando uma bandeira branca, abri um arquivo novo no Bloco de Notas. Ajeitei-me na cadeira, como se a postura ereta agradasse às musas inspiradoras. Sem mais delongas, digitei as primeiras palavras. Me pareceram boas.

E eis aqui, colegas e leitores, o rebento - parido a fórceps, mirrado e anêmico, mas nem por isso concebido sem amor. No fim das contas, até me agrada, o pequenino. Sei bem de seus muitos defeitos: o vocabulário deixa a desejar, há pouco nele que realmente responda ao critério do desafio, e é capaz de conter alguma idiotice gramatical em suas linhas tortas. O pior de tudo: carece de um final. Pois fecho com chave de ouro meu rol de ousadias e o entrego assim, incompleto, deixando a critério da homenageada meter-lhe ou não uma derradeira frase.

Afinal, últimas palavras são uma de suas especialidades.

1 Comentários:

Blogger MôNiCa disse:

Inaugurando os comentários versão 2006!!!
Cara, além de descrever coisas que só a Laura pode fazer (como dizer "Hom'essa" hj em dia),o txt da Aline é um verdadeiro tratado sobre o processo de criação! Garanto q todas nós passamos por isso ao escrevermos nossos txts para esse desafio tão especial. E Aline traduziu mto bem isso.
Mil bjinhos, moça! Foi lindo!

3/31/2006 7:05 PM  

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