13.11.05

Resposta da Maria ao Desafio VIII

Sejais, nobre leitor, bem-vindo a um grande reino, abençoado por Deus, não igualmente próspero como belo. Não porque não pudesse sê-lo: era farto de recursos e seu povo não tinha medo de fumaça. Não obstante tantas sortes, a tirania de seus soberanos tornava tristes e injustos os dias da gente daquela terra. Corria entre as bocas do gentio a profecia de que um rei redentor viria para salvar os homens de bem; entretanto, a despótica linhagem real seguia, e em cada sucessão a esperança de que o novo monarca findasse a opressão se esgotava nos cuidados dispensados apenas à corte.

Neste reino, vivia um jovem e bravo ferreiro. Apesar de ser homem do povo, conquistara dos outros plebeus o respeito e a confiança de um líder: falava sobre justiça e liberdade, tinha ideais que se criam impossíveis, e a todos conseguia tocar as esperanças, mesmo àqueles que consideravam-no um louco ou um algoz. Seu pai era filho bastardo de um antigo rei, e este dado levou os anciãos a profetizarem que o rapaz, um dia, poderia ser o rei salvador que libertaria o povo dos déspotas de quem era súdito. À corte não agradava que ocorresse à plebe semelhante idéia disparatada, mas que mal poderia lhes causar um simples ferreiro?, pensavam os nobres, incrédulos e seguros.
Eis que um dia, faleceu o mais severo dos reis que aquele reino já tivera: chegava ao fim uma era de trevas, na qual a terra foi arrasada, e muitos homens do povo, sacrificados. O príncipe herdeiro e os morgados, temerosos de que o gentio se voltasse contra o novo soberano, renunciaram à sucessão com veemência. Diante da instaurada cisão dinástica, conta-se que houve uma festa por três dias e três noites: os bardos entoaram canções de alívio, velhos inimigos do soberano, que tinham fugido ou sido expulsos, regressaram, os nobres da corte saíram às ruas, misturaram-se aos plebeus e comemoraram.

Ainda não passada de todo a euforia, teve início uma disputa pelo trono como jamais se vira naquelas cercanias. Vários nobres reclamaram seus direitos à sucessão, apresentando os mais diversos e longínquos graus de parentesco com o rei morto, com seu antecessor, com o conquistador do reino, com o donatário das terras. Um conselho, formado pelos mais importantes aristocratas da corte, resolveu por bem integrar um conclave, de forma que fosse decidido qual daqueles homens, cada um legítimo segundo seu próprio argumento, seria o novo soberano. Enquanto isso, o povo esperaria pela decisão, comportamento mais do que natural e esperado de bons súditos.

Nosso jovem ferreiro, percebendo que seu povo oprimido estava, mais uma vez, entregue ao arbítrio da corte, temeu que o novo soberano acabasse por se mostrar um tirano como todos aqueles que o antecederam. Tentou conclamar o gentio para que tomasse o poder contra o conselho dos aristocratas. Mas o povo, mesmo que muito respeitasse o rapaz, não se cria digno de contestar a soberania que Deus, em Sua infinita sabedoria, legara à nobreza para que ela pudesse gerir a amada terra em que viviam. Se o Todo-Poderoso os legitimara como porta-vozes da vontade, poder algum no mundo lhes poderia destituir. Mesmo sem o apoio de seu povo, o jovem ferreiro não desistiu e, apoiado pelos anciãos profetas, tentou interferir no conclave: inútil. Foi repelido por todos, nobres, plebeus, clérigos: ninguém estava disposto a escutá-lo, a unir-se a ele.

Três dias depois, o conclave teve um fim, e o novo soberano foi finalmente escolhido e anunciado na praça principal. Os súditos que lá estavam saudaram seu novo rei, sem mesmo saber quem era. O jovem ferreiro, também ali presente, se manteve firme, pois sabia que seu povo precisaria de sua força, e com ela contaria quando o rei se mostrasse um tirano. Enquanto o povo festejava seu novo monarca, nosso ferreiro voltou para sua vila, com o coração despedaçado e os ombros a doer, do fardo que ainda iria carregar. E enquanto andava pelas vielas, no lusco-fusco do cair da noite, uma negra figura encapuzada apareceu em seu caminho, brandindo um cajado de madeira retorcida. O jovem parou. Conhecia aquele vulto: era um bruxo. Com a voz roufenha, este último falou ao rapaz:

- Não podes fugir de teu destino, rapaz. Todavia, só poderás cumpri-lo quando te tornares um deles.

- Perdoai-me se vos pareço ignóbil, mas se me torno um deles, está desfeito meu ideal.

O bruxo virou-se de costas e murmurou que o aviso estava dado. Sumiu nas sombras da já-noite, tácito e funesto como aparecera. Ao rapaz, aquelas palavras doeram mais que um açoite: sabia que o bruxo jamais se enganava.

O tempo passou, e a sabedoria tingiu de paz os cabelos e a barba do ferreiro. Sua juventude se derramou nas praças ao longo dos anos, enquanto conclamava o povo a empreender uma revolução. Três reis ocuparam o trono desde a primeira vez que o homem tentou interferir na escolha do novo soberano, e nas três sucessões ele repetiu tal gesto. Três lutas, três decepções, três aparições do bruxo para lembrar ao ferreiro que seu destino estava selado. E ele, fiel ao ideal que se tornara sua razão de vida, jamais seguiu o conselho do velho feiticeiro.

Sucedeu que o então rei contraiu uma doença incurável, que lhe vinha ceifando os dias na medida de segundos. Não tardaria, seria inevitável um conturbado processo sucessório no reino, haja vista a inexistência de herdeiros diretos. Ciente desse trágico curso, e já sentindo a venda dos anos tornar-se cada vez mais enegrecedora sobre os olhos, o ferreiro resolveu procurar o bruxo e acatar seu destino. Sabia que talvez fosse aquele o último novo rei que ele veria subir ao trono.

Ao chegar à caverna onde vivia o feiticeiro, na floresta dos arredores do reino, este último já o esperava na entrada: previra sua vinda. Humilde e reverente, o ferreiro fitou os olhos do anfitrião, depois baixou os seus.

- Vales mais como rei que como truão, a berrar para o vento - o bruxo disse.

- Aqui estou. Dizei-me que devo fazer.

- O que vens fazendo desde nosso primeiro encontro. Tens tuas raízes ao teu favor. Do resto, encarregar-me-ei eu.

Dito isto, o bruxo virou-se e disse algo numa língua ancestral ou secreta que o ferreiro não conhecia. Foi então que este último percebeu que o feiticeiro não estava só: um outro, com vestes tintas de um cinza-esverdeado, respondeu algo também ininteligível e saiu em seguida, com os passos firmes e vigorosos de quem tem um poder maior que o de um rei. Novamente o bruxo negro virou-se para o ferreiro, desta vez brandindo o cajado com força e entoando um cântico místico. Uma luz vermelha envolveu o ferreiro: cada palavra, cada movimento do feiticeiro faziam a intensidade do lume incandescente aumentar. Já sem mais enxergar e com um estranho zumbido nos ouvidos, o homem sentiu seus músculos retesarem e a pele esquentar; no instante seguinte, a luz tinha-se apagado. Seus humildes andrajos tinham magicamente dado lugar a roupas nobres, sua barba e cabelos estavam aparados, sentia-se mais forte, como se remoçara vinte anos. Caminhou até uma bacia de água e mirou nela seu reflexo: o rosto que os anos e as decepções tinham tornado duro se transformou num semblante sereno, de olhos complacentes. Era a angelical imagem de um soberano tocado por Deus.

- Não apenas tua expressão tornou-se mais branda: também tuas palavras serão macias e sem ódio. Vai agora. Vai ao palácio e toma teu lugar. Lá te espera meu companheiro, o que viste sair há pouco.

- Sou agora um deles.

-Não. Mas o serás a tempo.

Sem bem compreender as palavras do xamã, o ferreiro deixou a caverna e caminhou em passos rápidos para o palácio real, onde já estavam reunidos, havia dias, os nobres que reclamariam o trono. Ao lá chegar, descobriu que o rei falecera poucos minutos antes, e que, misteriosamente, muitos aristocratas souberam e apoiaram sua intenção ao trono. Por detrás de uma cortina no salão principal, viu a sombra cinzenta da túnica do feiticeiro, e um calafrio mórbido percorreu-lhe a espinha. Sabia que aquele bruxo ela seu aliado, mas por algum motivo, ele o temia mais que tudo.

Sem delongas ou resistências significativas, o ferreiro foi proclamado rei. Poderia, agora, libertar seu povo da tirania como intentara por toda a vida. Camponeses e artesãos, homens e mulheres simples, comemoraram a coroação mais do que jamais tinham comemorado qualquer outra. Recitavam trovas, cantavam a chegada do salvador, agradeciam a Deus por ter enviado um de Seus designados para viver como o povo.

Os primeiros tempos de reinado foram uma anunciação de tudo o que o novo rei sempre quis fazer por seu povo. Entretanto, com o passar dos anos, o regime não parecia sofrer qualquer alteração. O novo monarca percebia que as relações da corte com ele eram distantes, quase professorais. Sentia-se afastado das decisões do reino: um aristocrata de sua confiança tomava-as por ele; de mais a mais, era como se suas forças se tivessem exaurido, e seus ideais, se esfacelado. Uma vez no trono, o ferreiro pareceu imbuir-se do espírito soberano do poder, e os ideais que defendera toda a vida tornaram-se frágeis a seus olhos. Por muitos e muitos anos, aquele plebeu de origens nobres foi o símbolo de esperança de um povo que, mesmo sem crer-lhe nas idéias, fazia-o nas intenções. Naquele momento, coroado, sua figura vazia já não inspirava a confiança e o respeito que conquistara outrora.

Eis que um dia, um duende fanfarrão, tendo tido um favor negado pelo nobre mais próximo do rei, encheu-se de raiva e resolveu vingar-se com um malfeito. Tendo já pedido e concedido favores a toda a aristocracia do reino, sabia que o rei tornara-se uma figura vazia, e que quem o conduzira ao trono não fora Deus, mas a magia negra dos bruxos negro e cinzento, por meio da qual infinito poder e vida eterna foram prometidos aos membros da corte em troca do apoio ao soberano do povo. Para dar cabo de sua revanche, o duende esperou, empoleirado no alto da torre da igreja, que a missa de domingo acabasse e que os fiéis começassem a sair. Quando isto aconteceu, ele se pôs a gritar, com sua voz grave e seu tom cinicamente solene:

- Ó, povo tolo! Acudi que comemorai a sopa de merda que se vos serve! Sabei todos, e eu vos farei sabê-lo: vosso rei é ilegítimo e vossa corte vos engodeia! Abusou de vossa boa fé, que o rei não governa nem por vós nem por ninguém: cá quem manda é o grão-duque! Mais vos digo, plebe surda: coroou-se ele por meios escusos! Críeis mesmo que toda a corte apoiaria um ferreiro bastardo sem que aí houvesse um dedo podre? Se imagináveis que não sou digno de confiança, sabei que seu rei herege coroou-se pela magia negra! Todo e cada qual dos nobres da corte foi seduzido pela magia do bruxo cinzento, o poder das trevas maior que o poder divino!

Com estas palavras, o duende sumiu-se da torre da igreja. Na praça, dezenas de homens e mulheres do povo, incrédulos uns, perplexo outros, furiosos uns terceiros, sentiam-se traídos pelo homem em quem confiaram. Era, então, o rei uma fraude? Manipulara os homens do direito divino com a torpe magia dos bruxos, párias daquele e de todos os reinos?

Muitos choraram, muitos blasfemaram. Mas se algo fizera o ferreiro por seu povo foi, durante sua busca por justiça, ensiná-lo a pelejar. E, honrando este conhecimento do tempo em que o então rei era um dos seus, um homem do povo e de Deus, a gente do reino se uniu, disposta a tomar o palácio. Percebendo a tempestade que se avizinhava, a corte tratou de relembrar à plebe que era designada por Deus. Para tal, começaram metendo o duende torto numa gaiola e dependuraram-no numa árvore para só ser libertado dez anos depois. O próximo a ser castigado foi o grão-duque: foi advertido e convidado a se afastar da corte. Ao mago cinzento, depois de açoitá-lo nu na praça e pelar-lhe os cabelos em sinal de repúdio, fez-se o mesmo.

Finalmente, era o momento de decidir que far-se-ia do rei. Ainda inebriado do estupor dos acontecimentos, o outrora ferreiro apenas observava sua crucificação, estupefato, tentando defender-se vez por outra com palavras que pouco diziam e apelos que o povo não mais reconhecia. Embora a aristocracia afirmasse que, acometido de uma doença traumática, o rei fora poupado de todas as ações pecaminosas da corte, havia um desejo coletivo de extirpar da plebe a imagem do soberano inocente vindo das massas. Por bem do regime e, sobretudo, pelo seu próprio, a nobreza afastou do trono o rei que fora a promessa de um salvador. A ilusão estava finalmente acabada, e com ela o próprio ferreiro, que definhou por poucos dias depois de sua deposição. Morreu de velho, de triste, de descartado. Acima de tudo, morreu de perda de ideais.

Assim termina uma história que, como certamente percebestes, não começou por “era uma vez”. Transgressão, podeis pensar, e tendes razão se o fizerdes. Sucede que nada é mais oportuno para contar-vos a história deste rei, que vendeu ilusões e deixou-as deitar por terra em tão frágil descortinar, do que partir-vos a expectativa: é o preço que pagais por dar como certo o ovo antes de pô-lo a galinha. Cabe, então, a vós contardes e recontardes a história como deve ser: tratai de metê-la o profético “era uma vez”.

4 Comentários:

Blogger Paty disse:

A alegoria profética da Terra Brasilis!

Maninha, nesse aqui você se superou. Foi a resposta mais fiel ao desafio, criar um conto de fadas (ou melhor, de bruxos) com todo o cenário, os componentes clássicos e o linguajar impecável (com ecos de Saramago no excelente trato à última Flor do Lácio) é um tento hercúleo.

Trata-se de um texto cujo deleite aumenta na segunda leitura (pois a lesa aqui demorou a perceber do que realmente se tratava a história), detectando as sutis ironias e o sarcasmo em pequenas doses. É uma delícia acompanhar e identificar eventos históricos e personagens idem no desenrolar dessa epopéia.

E, como já disse, profético: o duende já se foi (mas ainda esbraveja), os bruxos também e o grão-duque idem. Só não vejo o rei sendo deposto. Mas se ele morrer logo após o seu reinado, teremos uma dupla ironia...

Realmente, uma história impossível de se iniciar por "era uma vez", visto que ainda "está sendo".

Primoroso!

12/26/2005 3:20 AM  
Blogger Aline Brandão disse:

Me pergunto se nós vamos viver para ver a lição de moral deste conto-de-fadas se tornar um final feliz. O que é pior, cada vez mais eu suspeito que não...

Estilo perfeito, as escolhas vocabulares não poderiam ser melhores (then again, o que esperar de você?), suas metáforas deixam no chinelo aquelas de começo-de-governo. Excelente!

Só quero ver o quão profético há de ser este desfecho...

12/26/2005 2:58 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Teu melhor texto! Sem dúvida, o teu melhor texto!!!

Tem tudo aí: a metáfora maravilhosa (me deixou sem palavras sobre o quanto a idéia foi foda, ainda mais transposta pro universo de conto de fadas), o uso corretíssimo e oportuníssimo da segunda do plural (q eu, particularmente, acho um saco de usar e, por isso, nem me arrisco), a forma de narrar e de convidar o leitor... Perfeito!

Sobre a história, agora: será q veremos o rei rodar?? Só o tempo nos dirá. E, apenas com ele, o "era uma vez" pode tomar seu lugar de sempre.

1/11/2006 1:53 AM  
Blogger Renato Guilarducci disse:

só a Maria responde ao desafio???
Pow, Mari, cadê aquele texto de marcar época que você disse que escreveu???

(foi mal. Sem saco pra ler o post da Maria e com menos ainda pre escrever qq coisa q preste... :-D)

2/20/2006 9:50 PM  

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