27.9.05

Resposta da Aline ao Desafio VII

Sem Amendoim
(Baseado em Número 4, resposta da Liliane ao Desafio V.)


Ninguém sabia explicar direito, mas o fato é que ele tinha uma... habilidade sobrenatural, digamos assim. Um poder mágico, um sexto sentido, uma intuição absurda, pela qual ele agradecia todas as noites antes de se deitar; pois se não fosse por ela provavelmente já teria perdido o emprego.

Ele mesmo não sabia que tinha esse poder, até o dia em que começou a trabalhar naquela parte da lanchonete. Se soubesse, não teria passado pelos caixas nem sofrido no calor da cozinha; teria se encaminhado diretamente para o balcão de sorvetes, o mesmo em que estava agora e que já conhecia como a palma da mão.

Ele tinha a capacidade mística de adivinhar, com absoluta precisão, qual sorvete o freguês pediria. Qualquer um que chegasse, ele dizia na lata: casquinha de baunilha, sundae de caramelo, copinho caprichado, especial de verão. E não dava outra. Era batata. Nunca errou uma. Conhecia no olhar o que a pessoa queria. O que precisava. Já fazia o sorvete antes mesmo de pedirem, causando surpresa e admiração. E já atraía a freguesia: diziam que tinha gente que ia lá só pra tentar entender como ele conseguia - ou pra esperar pelo dia em que ele ia quebrar a cara.

Que esperassem sentados. E, de preferência, lanchando. Lucro para a empresa, lucro para ele.

Mas o que importa é que sua habilidade misteriosa lhe permitia certos caprichos, certos privilégios, o que lhe era muito útil. Tinha mais tempo de folga e, diferente dos colegas, podia passar alguns minutos distraído, vendo o movimento. Podia exercer o hábito que alimentava seu poder: observar as pessoas. Gostava de ficar analisando os comportamentos humanos, olhando disfarçadamente pra cada estudante que ria, cada executivo que devorava correndo um sanduíche. Se um dia entrasse para uma faculdade, queria que fosse Psicologia.

Seu objeto de estudo da tarde estivera ali desde o horário do almoço. Já fazia algumas horas. Entrara acompanhado; agora estava sozinho. Praguejou por ter perdido a maior parte da história - por que diabos tanta gente resolvia tomar sorvete de sobremesa? Perguntou pro pessoal da limpeza, mas os imbecis sabiam menos do que ele. Tudo que descobriu foi que o caso envolvia um anel de compromisso nas batatas fritas.

Foi o suficiente para que ele deduzisse o resto.

O lanche do garoto já tinha acabado, mas ele continuava sentado ali, já naquele estágio em que se parou de chorar mas ainda se está um tanto apático. Olhar perdido - na certa se lembrando, do fora ou de antes. Em situações normais, algum funcionário já teria reclamado por ele estar ocupando uma mesa à toa. Mas ninguém tinha coragem de se aproximar daquele menino, ninguém sabia o que dizer. Pena, no rosto de todos eles, sempre que olhavam para o pobre do rapaz. Por isso mesmo, tentavam ignorar, rezando para que ele fosse embora logo; que se jogasse de uma ponte, desde que fosse bem longe.

Ele não tinha pena; era um cientista social, tinha que olhar para o sujeito com imparcialidade e frieza. Era difícil. Por várias vezes se pegou tentando imaginar o que levou àquele fim trágico: há quanto tempo o garoto e a ruivinha estavam juntos? Será que ele não se precipitou? Talvez a ruivinha só estivesse a fim de uma brincadeira. Talvez nem gostasse tanto dele. Talvez até gostasse, mas na hora que viu o anel no meio das batatas descobriu que não queria mais. Talvez ela fosse uma desgraçada; talvez ele fosse um psicopatazinho na intimidade, e ela o temesse.

Mas o fato é que o garoto estava lá chorando, enquanto a ruivinha tinha saído pela porta há algumas horas. O cliente tem sempre razão.

Suspirou, olhando de relance para o relógio de pulso. Fim de turno, hora de ir. Sem pensar muito, puxou com um gesto mecânico um copinho transparente. Abaixou com displicência a alavanca do sorvete de baunilha, enchendo o copo; puxou para o lado com um floreio, para formar aquela pontinha bonitinha. Caprichou na calda de chocolate quente e macia; quase até a borda, deixando espaço apenas para espetar a colherzinha branca e um biscoito palito - sabia que não era aquele o padrão da loja, mas que se danasse. Sabia também que aquilo seria descontado do seu salário - estava quatro reais mais distante do aparelho de som - e não se importava.

Ninguém prestou atenção quando ele saiu de perto das máquinas de sorvete e atravessou os corredores de mesas em tons de bege. O único que olhou foi o garoto, quando viu a mão estender o sundae de chocolate na frente de seu rosto inchado. Ele deixou o copinho em cima da mesa; "por conta da casa", disse, e deu um tapinha no ombro do moleque.

Nem ficou para conferir se havia acertado. Quando foi embora, ninguém na lanchonete entendia porque ele estava com aquele sorriso tranqüilo no rosto.

2 Comentários:

Blogger Maria Laura disse:

Uma palavra que pode ser a glória ou o inferno de um escritor:

FOFO.

^_^

Mas agora, falando mais profundamente. Esse mocinho tem uma coisa interessantíssima, que me conquistou pela complexidade: é um sensível, sem dúvida. Mas muito objetivo. Ou seria o contrário?

Ele é um personagem complexo. Que mesmo sentindo que uma boa-samaritanice lhe faria bem (e decerto faria bem ao pobre do menino) não esqueceu do seu aparelho de som. Que mesmo quando observa as características das pessoas e adivinha seus desejos, consegue transpor toda a sua análise de forma racional e prática para seu trabalho -seu sustento, afinal!

Ele é um cara que eu gostaria que existisse. Um cara que vê 50% do mundo com o hemisfério direito do cérebro e os outros 50% com o esquerdo. Sempre, é claro, acertando o que ver com qual.

Texto muito gostoso (adoro essa coisa de narração em quase-primeira-pessoa). Parabéns! =*

10/28/2005 7:29 PM  
Blogger Paty disse:

Adoro esse garoto e seu dom sobrenatural de prever sorvetes alheios. O personagem é tão bem construído, verossímil, gente-como-a-gente. Impossível não gostar dele com seus sonhos mundanos de comprar um aparelho de som, sua compaixão pelo próximo disfarçada de observação científica e seu senso de humor peculiar (sim, ele é babaca dos meus!). Sem dúvida a pessoa certa para observar o desastre amoroso do pobre garoto do anel nas batatinhas.

Ah, impressionante como esse texto junto com o da Moniquinha formam um panorama da história original da Lili, atuando de forma complementar a ela: a cena se desenrola com o cínico da Mônica olhando de um lado (e correndo atrás da ruivinha) e o garoto sensível da Aline acudindo o garoto pelo outro lado.

Isso dava um curta-metragem. Alguém topa fazer um roteiro? :)

11/15/2005 5:12 AM  

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