1.8.05

Resposta da Priscila ao Desafio VI

Tributo à Geladeira Perdida

O ano era 1984. Não, não, essa história não tem nada a ver com as filosofias pessimistas de George Orwell. Aliás, posso dizer que o único ponto onde nossas histórias se tangem é no enfoque a uma presença onipresente. Mil novecentos e oitenta e quatro foi o ano do surgimento de uma grande companheira, que me acompanhou quase absolutamente durante longos dezenove anos. Mais que uma Grande Irmã, ouso trata-la como uma segunda mãe: é a minha querida geladeira!

Com muito orgulho e num brado retumbante, digo: ela era uma Brastemp! Destacava-se daquelas caixolas arredondadas que se popularizaram nos idos dos anos setenta, mas continuavam populares à época. Minha geladeirinha, 330 litros, Frost Free, duplex e dez palmos mais alta que as habituais, alçava minha casa ao patamar de atração turística. Vizinhos curiosos surgiam de todos os cantos e, malandros que são, logo pediam um copo d’água, apenas para conhece-la. “Uau, como é alta!”, “Chocante, tem congelador!”, “Caracoles, e o porta-ovos?”, eram os elogios freqüentes a que a menina rapidamente se acostumara.

Assim foi, por anos. Na década de noventa, duas diferenças essenciais no panorama social doméstico haviam acontecido: as Brastemp Frost Free se disseminaram e eu cresci. Tomei parte da minha existência e criei memória; agora posso contar a história sob meu próprio ponto de vista, não importa se isento ou insuportavelmente fabulístico!

Desde quando eu me lembro por gente, ela sempre esteve lá, me acolhendo. Sua traçoierice nunca me intimidou; pelo contrário, aqueles um metro e oitenta e cinco de imponência travestiam-se, pra mim, em doçura e acalento. E isto no sentido literal do termo, porque não eram raras as vezes em que eu derramava coca-cola e danoninho nas gavetas, que escorriam prateleiras abaixo e misturavam-se à alface, à cenoura e aos tomates do compartimento inferior. Mamãe sempre gritava impaciente comigo, mas nunca me batia. Eu, consciente da culpa, oferecia-me para limpar tudo, desde que ela esperasse o Xou da Xuxa acabar. E limpava, desculpando-me mentalmente por fazer a pobre-coitada sofrer com a minha falta de zelo. “Desculpa, geladeirinha, eu sei que você não se mexe, mas deve sofrer por trás de tanta frieza. Nunca mais a destrato, prometo!” É, acho que ela compreendia, mesmo que eu repetisse o descuido dias depois.

Como toda brega genuína, não poderia, nunca, priva-la de seu trabalhinho extra: servir como secadora de roupas. Camisetas, calcinhas, meias e até ursinhos eram pendurados naqueles ferros quentes que mais parecem um varal. Durante muito tempo, de fato, achei que aquilo realmente fosse uma segunda função da geladeira! Tanto que, nos dias de inverno, deixava meu uniforme dormindo nos metais e vestia a roupa quentinha na manhã seguinte, acalentada pela amiga bonachona.

Não posso deixar passarem em branco, também, as desobediências. Mamãe adorava comprar infinitas garrafinhas de Yakult todo início de mês, a princípio para durarem o mês inteiro. E me proibia, com veemência, de tomar mais de uma por dia. “Lactobacilo demais faz mal, dá diarréia!”, dizia ela. Mas, insolente que sou, não perdia uma deixa para descumprir a regra. Bastava ela sair de casa que eu, de fininho, abria a geladeira. Aquela luzinha mágica, automática, parecia uma complacência à felicidade que me descia toda vez que litros e mais litros de Yakult apareciam ali, à minha completa disposição. Uma conquista que compensava qualquer revertério.

Por anos e anos, assim foi minha relação com ela – não apenas um eletrodoméstico, mas quase um membro da família. Muitos ursinhos pendurados e yakults surrupiados depois, sua imponência permanecia a mesma. Uma coroa conservada, diria eu. Só que, como toda era tem um fim, e todo trabalhador precisa se aposentar, ela teve que partir. Isso foi ano passado.

Meu pai chegou com a boa notícia via internet, num e-mail encaminhado das Lojas Americanas. Abri. Aço inox, prata, 432 litros, sexto sentido, água que sai pelo lado de fora e muitas outras frescuras. Não acredito que comprou isso! Na hora fiquei feliz, mas 3 segundos depois lembrei: “E a nossa geladeirinha?”

“Pois é, essa a gente vende ou dá pra alguém”, ele disse. Sabe aquela sensação de que você sabe que alguém está prestes a morrer, mas não pode fazer nada para salva-lo? Foi exatamente assim que eu me senti. Tomada por um sentimento sombrio de despedida, abri a meninota e pensei – não sou louca, apenas penso, e creio que ela compreenda – “não fique triste amiga, eu vou te visitar quando mudar de casa”...

Os dias passaram, e os homenzinhos chegaram aqui em casa com a geladeira nova. Pediram-me para desligar a velha, e eu obedeci. Fui esvaziando-a aos pouquinhos, lembrando de todos os momentos que passamos juntas, das confissões, da fidelidade irrestrita... enquanto isso, ligava aquele bicho cinza, que mais me parecia uma obra de arte futurista, e me assustava com a quantidade abusiva de botões. Talvez ela falasse, até.

E os amigos chegavam, apreciavam, bebiam aguinha pela bica do lado de fora, elogiavam o design. Eu corroborava, mas apenas exteriormente. Nunca vou considera-la uma mãe; no máximo, uma irmã mais nova. Perguntavam-me sobre o que iria fazer com a geladeira antiga, e eu a oferecia, gratuitamente, desde que houvesse um comprometimento em trata-la com carinho. Até que uma moça aceitou. Mamãe combinou com ela, três dias depois viria o caminhão de frete.

Tratando de aproveitar ao máximo meus últimos três dias ao lado de tão nobre companhia, resolvi fazer uma sessão de fotos. Fotografei porta, logotipo, pé, encalço... tudo. E resolvi abrir a porta, para tirar fotos também da parte de dentro. Na hora eu senti um cheiro estranho, de morte. E meus olhos quiseram chorar. Cadê aquela vivacidade? A alegria? As cores dos legumes, as cocas-colas? Nunca mais poderei secar ursinhos, é isso? É... dezenove anos de fidelidade jamais se interrompem sem provocar dor, pra quem quer que seja. Um símbolo do trabalho ininterrupto agora repousava ali, naquele aroma mofado, e como isso me doía! Mesmo assim, fiz questão de segurar o choro: talvez ela se emocionasse também – e geladeiras, definitivamente, não podem sofrer fortes abalos emocionais. Dá defeito.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

Antes de vc começar a ler, vc disse q num sabe escrever coisas profundas e q seus textos são superficiais. Ledo engano, o seu... Quer coisa mais sensível do q fazer uma retrospectiva da infância e falar de saudade e amizade usando como personagem um simples eletrodoméstico??? Ora, objetos são coisas tão impessoais q fica difícil enxergar algum sentimento na sua frieza estática... E o mérito do seu texto está exatamente em negar essa frieza. Superficial é o caralho!

Bjs bjs bjs e parabéns!

8/14/2005 4:44 PM  
Blogger Paty disse:

Outro texto que definitivamente não é o que parece. Disfarçado de nonsense homenagem a um prosaico eletrodoméstico, de fato consiste em uma tocante elegia da infância perdida. Sim, objetos possuem esse dom de acumular lembranças. E facilmente se tornam companheiros de vida.

De resto, quem sabe a geladeira inteligente com água do lado de fora será assunto de nova crônica daqui a outros dezenove anos?

O final alegrinho não disfarça o ter amargo do texto, em uma mistura bittersweet (recuso-me a usar "acridoce", palavra feia que só). Destaque pra caracterização de época nas gírias da década de 80. E quem nunca secou uniformes ou ursinhos atrás da geladeira, que atire o primeiro Kichute! :D

11/15/2005 3:02 AM  

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