22.6.05

Resposta da Aline ao Desafio V

Mortalha

Baseado em "The Long And Winding Road"


Acelero, a estrada um borrão ao meu redor. Estou sozinho.

Os outros teriam me dito que não devia vir - as lembranças me fariam mal, o lugar ainda era perigoso demais. Todos agora temem essa estrada em pedaços, castigada pela fúria divina.

Para mim, é somente o caminho de casa, o caminho de seu último lar.

Sigo pelo que um dia fora nossa praia favorita, o tempo todo tentando me lembrar do seu sorriso sereno ao olhar pela janela, o cheiro de maresia se embrenhando nos seus cabelos. Você, eterna sereia, adorava o mar, adorava o vento fresco vindo dessa imensidão azul, adorava este ar úmido e maternal. Lhe faziam bem, nossas viagens. Era quando você mais sorria e mais cantava. E eu sempre amei sua voz.

Mas a memória que me resta - e que, por mais que eu tente, não há de se apagar jamais - é a de um carro vazio, de uma estrada triste e destruída, de um mar hostil que devorara a nossa ousadia. De um céu que chorava, solidário.

No caminho eu sofria, sentia dor e raiva e medo - e agora, passando novamente pelas pedras e solavancos que um dia foram nossa estrada macia e gentil, sinto tudo de novo: o ódio que tive de Deus, dos homens, de mim. A esperança me abandonando a cada metro percorrido. À frente um único caminho, agora falho e tortuoso - nossa casa. Nossos planos. Você. E você não era mais. E eu não era mais.

Os outros não reconheceriam, mas eu não consigo esquecer. Não posso esquecer. Não quero. Aqui. Freio o carro.

Ali ficava a nossa casa, bem na beira do mar. Ali havia coqueiros, ali pedras; ali era nossa varanda. Ali eu construiria um pequeno píer, quando o dinheiro permitisse um barco. Ali você costumava tomar sol. Ali nós dois caminhávamos toda tarde. Ali nós fizemos amor. Ali (e eu jamais pude lhe dizer), eu imaginava nosso filho fazendo castelos de areia, nos mostrando as conchinhas que cataria.

Agora, sobre a nossa orla, há apenas poças d'água e lembranças.

Saio do carro sem perceber bem, sentindo novamente o turbilhão no peito. O corpo me leva, passivo, mais para perto. Não há mais os inúmeros braços malditos e surdos que me impediram de ir até você naquela noite. Desta vez, sou livre para avançar. Meus pés afundam na areia; as pernas bambas não agüentam mais caminhar, e deixam-me cair indefeso no solo incômodo e quente. Você amava brincar com os grãos de areia, vê-los escorrer por entre os dedos... o que te acariciava agora arranha e fere. Me arrasto, o sol ainda forte o suficiente para cegar. Ergo os olhos para o céu, buscando você, mas é no espelho das águas que sei que vou encontrá-la.

Para mim, as areias do tempo não se movem mais, mas em verdade já se passou um ano. Confesso que tentei - pelos outros, não por mim - buscar um outro apartamento, um outro emprego, um outro amor, uma outra fé... mas todas as tentativas terminaram em solidão e lágrimas. E vinham novamente os outros (por que não me deixam em paz?!) a palpitar e empurrar para cima, ordenando que eu não abandonasse a vida.

Mas como, amor, me diga, poderia eu abandonar aquilo que já não tenho?

Revejo mais uma vez aquela noite (os joelhos já úmidos): apenas cinco horas nos separavam. Talvez o trânsito, algum atraso no trabalho, uma estupidez qualquer, não importa - o que importa é que, não fossem aquelas cinco horas, eu estaria aqui com você. E como eu queria ter vindo com você... ido com você. E como eu quero estar com você.

Tiro os sapatos, sujos e profanos, antes de penetrar no templo que a abriga. Sinto a água ao meu redor, fria e lenta, se acomodando à minha presença intrusa, me engolindo pouco a pouco. E choro, pedindo a todos os deuses de água e de ar que realizem apenas esta graça; e grito seu nome a plenos pulmões, grito tudo aquilo sufocado em minha garganta, grito pelo seu canto de sereia; e me entrego, já sem forças, implorando para que as ondas me levem, finalmente, para seu reino sagrado além da escuridão.

Mas o mar, zombando de mim, está calmo.

Com imenso pesar, compreendo que ainda não é o momento do nosso reencontro. Meus pés imbecis me carregam de volta para o seco. À medida que me afasto de você, sinto frio. Os outros voltam a invadir minha mente, com tudo aquilo que eu deixaria para trás num átimo por um beijo seu que fosse.

Mas sei que hei de voltar. É o único caminho que me resta.

Seco minhas lágrimas, mesmo sabendo que não serão as últimas. Já é noite. Estendida à minha frente, nossa mortalha - a estrada, longa e sinuosa.

4 Comentários:

Blogger Aline Brandão disse:

N.A.: Windind sheets = mortalha.

6/22/2005 11:28 PM  
Blogger Paty disse:

Intenso, triste, sofrido. Um nó-na-garganta em forma de crônica. Faltam-me palavras para descrever a riqueza como os sentimentos desse homem foram esmiuçados, com o fluxo de pensamento retratando fielmente a mente conturbada.

A interpretação da música foi um primor, essa imagem nunca teria me passado pela cabeça ao ler a letra. Agora, não vou mais conseguir ouvir "The Long and Winding Road" sem pensar nesse homem ávido para morrer no mar, mas sem coragem de fazê-lo.

Depois desse texto fica impossível acreditar, citando outra música, que "é doce morrer no mar".

6/25/2005 3:20 AM  
Blogger Mariana disse:

(Não. Dessa vez não tem palavrão nem excesso de exclamações.)

Aline, tenho q falar q teu texto desencavou uma lágrima teimosa de mim. Não é pieguice, não, mas o fato é q é difícil um texto me deixar a beira de lágrimas. O teu conseguiu. O sentimento salta dele, a tristeza invade quem lê, levando a compartilhar a perda do seu personagem (por sinal, mto bem construído. Queria mto conversar c/ ele e tentar confortá-lo de algum modo). E a música foi mto bem empregada, vejo a evolução do texto acontecendo simultaneamente à música, è letra e ao fundo orquestrado.

Enfim, resposta excelente ao desafio. Tô orgulhosa de vc, mana cinzenta!

Bj bj bj!

(Grande sacada a da mortalha!)

6/25/2005 8:15 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Eu não sei quem são vocês, mas vocês são geniais. Parabéns pela idéia do desafio senhoritas trovadoras de Minerva. Aline... que viagem na dor... acho que em breve to procurando algo seu nas livrarias.

http://spaces.msn.com/members/lercwb

Luiz

7/04/2005 1:45 AM  

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