27.6.05

Resposta da Maria ao Desafio V

Sou um hedonista, minha cara. Alguns preferem me chamar displicente, irresponsável, insensível até –esta, a maior das incompreensões–, mas tudo o que faço é roubar ao mundo o meu prazer. Você já devia saber disso... Certo, talvez você saiba. Mas gosto de pensar que trato com uma vítima inocente, não com uma geniosa doidivanas. Mesmo porque, ainda que você tenha a consciência de que meu desejo vai de encontro ao seu, decerto você não sabe exatamente de que se trata. E nem poderia, porque eu não gozo o momento simplesmente, como você viu outros moços e moças fazerem: eu o amo, e isso é totalmente novo para você.

Pode ser pretensão dizer que sou o único que pensa e sente desta minha maneira particular, mas sei que não sou um cara comum. Sou mesmo um pouco difícil de ser compreendido, tão raros são os meus pares. Há quem me tome como um controvertido idealista, um contestador... Mas sabe, eu não quero mudar o mundo. Pro diabo com o mundo! Como quer que eu viva, ele continuará a girar, suas racionais rodas dentadas continuarão a ranger e gastar todos aqueles que não se lubrificam de prazer e subjetividade. Não posso atingi-lo, e nem ele a mim. E apenas porque não aceito ser cerzido aos seus caprichosos clichês, isso não quer dizer que eu queira empreender uma revolução. É isso, parte da graça talvez seja justamente essa. Acho que um misantropo pedacinho de mim gosta de olhar em volta e sentir uma pontinha de pena.

Não pense, por isso, que sou cruel. A crueldade é apenas um lado de todos nós, e a minha só assumo até onde ela vai: nem mais, nem menos. Aparte isso, chego a me entristecer ao ver você aí, adormecida –e, pelos deuses, como a vulnerabilidade a deixa bonita!–, e saber que não compartilhamos de um mesmo objetivo. Sei que quando acordar, você vai querer de mim um beijo e a vida. Vai enxergar em mim tudo o que você gostaria de ser, vai se esforçar de forma sobre-humana para que a sensação física de plenitude que você teve há alguns instantes se metamorfoseie em sentimento e se prolongue por toda a eternidade, estável em sua rotina pseudo-renovatória. E eu, resignado com as alcunhas ofensivas e equivocadas que receberei, vou decepcionar você. Ao menos uma vez, gostaria que não fosse assim, minha cara.

Mas não se culpe, não é que você esteja errada. Ao contrário, você aprendeu exemplarmente a cartilha que lhe ofereceram, com cerejas e morangos, numa bandeja de prata e marfim. Viu o mundo cantar em coro uma fábula irreproduzível e deixou-se cair no transe coletivo. Não é sua falta. Eu mesmo, ainda não entendo como eles fazem isso... Como a controlam, como lhe aprisionam aquilo o que devia ser liberdade. Como a fazem chamar de sentimento um jogo de estratégia, em que você sacrifica exércitos em favor de um bem maior inexistente, e termina mortalmente ferida, com um sorriso nos lábios ensangüentados. Não, minha cara, eu não entendo. Não entendo como eles a fizeram acreditar que o prazer pode doer. Não entendo como roubaram de você a possibilidade de amar o prazer, o instante Não consigo conceber como eles a cegaram e a convenceram de que a verdade é eterna.

Sei que eles te convenceram de que as coisas são assim: eles não querem que você aprenda a ser feliz. E sei que, tão logo desperte, você vai perceber que não sinto do seu jeito, do jeito como eles a permitiram sentir. Sei ainda que você vai me dizer nomes, conforme já mencionei, ofensivos e inverdadeiros. Sei que vai me julgar, dizer que jurei em falso. Entendo, não será a primeira vez. Mas você estará cometendo um erro ao pensar assim, e a cada erro que você cometer, um pedacinho da cortina vai se abrir, mesmo que você não veja imediatamente o que há lá atrás. Se você errar o suficiente, talvez um dia você se dê conta de que não menti; de que você, sim, vive dentro da expectativa de uma mentira doce que lhe contaram. Quem sabe com o peso das rugas em sua face, você entenda que eu a amei enquanto mergulhava no misterioso desvio dos seus olhos; enquanto você revirava o ventre sobre meus quadris; enquanto eu sentia minha própria energia na sua pele; e que o amor que eu lhe tinha era efêmero, mas não por isso ilegítimo.

Então, pode ser que você entenda que eu a amo agora, enquanto lhe conto, em vigília, que este sentimento deixará de existir quando você for embora, e que talvez aconteça novamente se você voltar. Enquanto isso, eu continuo placidamente tocando meus acordes solitários, me valendo do mundo na minha busca pelo prazer. Ele não vai mudar, nem eu. E a magia da nossa relação é justamente essa.


(baseada na letra de While My Guitar Gently Weeps)

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Wooooooooow!!! *_*

Nossa, como a letra casou com o conto!!! Adorei a reflexão desse cara (adorei ele tb, apesar de ser um cafajeste pelo senso comum), descortina magistralmente a incompatibilidade de papéis masculinos e femininos na sociedade. Pq o homem é valorizado se for pegador e à mulher é ensinado que procure o "amor eterno"... E a gente vê q teu personagem não é um calhorda, é apenas um hedonista (aliás, q começo bombástico! XD), mas sabe o preço q paga por ser assim. ^^

Ótima resposta ao desafio! Parabéns, fia! ^^

7/06/2005 1:46 PM  
Anonymous Anônimo disse:

E agora q eu pensei! Olha q engraçado, nós duas fizemos textos com reflexões pós-sexo! XD

7/06/2005 3:56 PM  
Blogger Paty disse:

Ih, alá... Tinha esquecido de comentar esse aqui! Freud explica, provavelmente, visto que há algo nele que me afetou, embora não saiba dizer exatamente como (e o véio barbudo explica de novo!).

Devaneios psicológico-botequinescos à parte, que sujeito, hein? Sedutor e ao mesmo tempo irritante, com seu discurso muito bem articulado defendendo o que teoricamente seria indefensável. Teoricamente porque concordo com várias idéias dele. :P Mas o fato é: jamais interpretaria a letra da música dessa forma e, ainda assim, quando li, o texto fez todo o sentido.

No mais, o vocabulário absurdo de praxe. E preciso perguntar: as aliterações espalhadas no texto eram de propósito? :)

Ah, e também achei o começo impactante! :)

8/06/2005 12:10 AM  

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