3.9.05

Resposta da Maria ao Desafio VI

- Ah, desliga você primeiro, vá...
Não. Não podia estar mesmo em semelhante situação, ele pensou, levantando ceticamente uma das sobrancelhas. Já abandonara a adolescência havia algum tempo e mesmo enquanto nela esteve, jamais cometera um despautério daquele calibre com suas namoradas (é verdade que não as teve, suas memórias secretamente ponderaram, mas ele sabia que não teria tido coragem de embaraçar uma hipotética incauta nos fiapos daquela situação constrangedora).
- Heim? Desliga, vai? - a moça do outro lado do telefone insistiu.
OK, mantenha a calma, ele entoou em silêncio. Não iria destratar a moça. A encantadora e doce moça, tinha de se lembrar. Diabos, tinha de ser tão encantadora? Não o fora, ele diria um palavrão e desligaria o telefone logo em seguida, numa atitude tão furiosa que faria Ozzy Osbourne parecer um gentleman. Mas com aquela moça, ah... Ele não havia de fazer aquilo. Manter a calma. Manter a calma e ir com jeitinho, era isso. Era assim que amaciaria a situação e nela se deitaria, triunfal, como um gato preguiçoso.
- Mas por que isso?
- Não quero desligar na sua cara...
- E quer que eu desligue na sua? - ahá! Dera um argumento contra o qual ela não poderia reagir!
- Mas fui eu que liguei, meu chuchuzinho. Se você desligar, a ligação não cessa. Já se eu desligar, você vai ouvir aquele "tu-tu-tu" super triste.
Droga, ela conseguira rebater. E o pior é que estava certa. Mas que diabos haveria de errado com o sinal do telefone?
- Mas que diabos há de errado com o sinal do telefone?
- Com o "tu-tu-tu"?
- É.
- Ah, se você desligar o telefone e o som ficar mudo, eu ainda estarei conectada a você, à sua casa. Você vai estar ali por perto, mexendo no interruptor, deitando na cama, arrumando uma gaveta... E aí, quando eu desligar o telefone, vai ser uma quebra de elo harmônica. Mas se eu desligar o telefone, a ligação se encerra, nós nos desconectamos enquanto um de nós ainda está praticando o vínculo... Você vai ficar perdido no não-lugar telefônico, ligado ao nada, vagando entre as linhas cruzadas. E isso vai criar uma cisão traumática entre nós!
Caramba! Não satisfeita em surfar na maionese, ela dropava na batatinha e ainda entubava no suco de uva, ele pensou, enxugando a testa, cheio de pavor! Depois de semelhante filosofia telefônico-espiritual, que é que ele havia de dizer para demovê-la daquela idéia cretina? Não havia solução! Era o segundo argumento irrefutável que ela engendrara em menos de dois minutos. Sentia-se como um daqueles palhaços de circo, cujo companheiro mais esperto lhe espatifa uma torta na cara cada vez que abre a boca - podia mesmo ouvir as risadas enlatadas em off naquele instante!
Certo, ela queria guerra? Guerra ela teria, ele pensou, decidido. Era muito mais experiente do que ela, já vira muito mais esquetes sobre esta situação em um dia do que ela em sua vida toda. E lembrou-se de que todas elas convergem para a idéia mais óbvia que se poderia desenhar numa psique minimamente funcional.
- Desligamos juntos então.
- Você promete?
- Prometo.
- Não vale trapacear, heim?
- Palavra de escoteiro.
- No "três", heim?
- Feito.
- Então tá... Um, dois... Três!
...
- Você disse que não ia trapacear!
Tudo bem, ele nunca tinha sido escoteiro mesmo... Mas seu plano falhara miseravelmente - por que diabos não se lembrou de que, em todas as esquetes que vira, essa solução não dava certo? Sua fonte de idéias secara. Estava vencido. Restava agora agitar a bandeira xadrez para ela e retirar-se resignado: tinha de desligar o telefone primeiro.
Mas, esperasse um segundo, ele se deu conta. Que situação mais esdrúxula, que exigência mais infantil! Porque, afinal de contas, ele não desligara o telefone de uma vez, desde o início? Afinal, que diferença fazia? Ela estava loucamente psicótica com toda aquela baboseira de "cisão traumática" e sabe-se-lá-mais-o-quê, mas ele ainda estava em pleno gozo de suas faculdades mentais! Que é que lhe teria custado poupar-se de todo aquele constrangimento e desligar o telefone? Como se sentia tolo então...
- Tá certo, docinho... - ele suspirou, fazendo gênero - eu desligo o telefone. Você fica mais feliz assim?
- Fico.
- Certo então... Não quer falar mais nada?
- Não.
- Certeza?
- Tenho, meu chuchuzinho.
- Olha que depois que eu desligar, já era.
- Tudo bem. Tem mais não.
- Então tá bem. Eu vou desligar.
- M-hm.
- Um beijo.
- Outro pra você.
- Tchau.
- Tchau.
Desliga o telefone, desliga o telefone, desliga o telefone!, ele pensava, desesperado, com o dedo sobre o botão do telefone, mas sem coragem de apertá-lo. Caramba, por que ele não conseguia? Aquilo era ridículo!
E enquanto ele suava frio, na torturante expectativa do momento em que emudeceriam os sons da namorada, ele ouvia a moça cantarolar, do outro lado da linha, a música de um desenho animado. O favorito dele. O favorito dela. Não que ela fosse muito afinada, mas ele não queria desligar, e isso era um fato. Rendeu-se.
- Docinho, eu não consigo desligar o telefone.
- Por quê?
- Isso é tão ridículo... Quer dizer, não é que seja ridículo que você não queira desligar... Sabe, você está na idade de fazer isso, mas eu já sou um cara mais velho, e eu há estou numa outra fase da vida, eu dou valor a outras coisas e, e, e... Não, não é que eu não dê valor a você, não é o que eu estou dizendo, mas acontece que esses comportamentos não são mais aceitáveis para mim... Imagina o que o meu chefe ia dizer se soubesse de uma coisa dessas?
- O que, exatamente, você está querendo dizer?
Ele suspirou.
- Eu estou querendo dizer que entrei no seu jogo. Pronto, falei. Não quero desligar o telefone porque não quero me desligar de você. Simples assim.
Finalmente se libertara! Essa era a função daquele relacionamento com aquela mocinha tão doce e infantil: era libertá-lo de suas máscaras sociais! Era trazer à vida a espontaneidade que a idade lhe engessara, deixar-lhe claro que lhe era permitido ser ele mesmo, sem medo de pré-julgamentos, de opiniões alheias! Ao constatar toda essa miríade de felicidade espiritual, seu coração ficou leve, o acanhamento cessou, e ele sentiu-se pronto para cantar sua felicidade numa seita libertadora! Viva a sociedade alternativa!
Ainda imerso na bizarra euforia de sua constatação, ele ouviu, do outro lado da linha, uma risada maliciosa, abafada por provocantes lábios contritos. Era a sua namorada.
- Tá bem, então. Tchau.
Antes de ouvir o triste "tu-tu-tu", que amputava os laços mais profundos entre os seres humanos, ele ainda ouviu uma risada regozijada, feliz e triunfante. Vá entender as mulheres...

1 Comentários:

Blogger Paty disse:

Divertidíssima desconstrução do momento decisivo de uma relação incipiente: o "desliga você". Fica-se enredado nas mil e uma explicações escalafobéticas que esse homem racional e essa garota espertinha elucubram para permanecerem conectados por mais alguns instantes.

Destaque para as filosofias botequinescas, pseudo-esotéricas da moça e os truques televisivo-racionais desse quase-senhor. Até a conclusão final: vencido, ele admite a incapacidade de desligar. Triunfante e feliz, ela desliga. E o leitor se vê absolutamente deliciado com as tiradas de humor ágil dignas das melhores comédias.

Uma aula de originalidade extraída de uma situação pra lá de prosaica. Mandou muito, maninha! :)

11/15/2005 3:48 AM  

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