12.9.05

Resposta da Priscila ao Desafio VII

Inspirada no texto "Inclinada para trás", resposta da Mariana ao Desafio IV.


- Por favor, camareira, traga meu Ray Ban. Rápido.

Mister Alfredo estava apressado. E não era por menos. Sentado no camarim, dois cabeleireiros, um maquiador e uma manicure corriam para apronta-lo à maneira dos reis. Precisava de uma aparência impecável, solene, retumbante. Mais que de costume. Camareira pra lá, motorista pra cá, esmaltes e escovas pra acolá. O clima de euforia ressonava por cada membro da equipe. Alfredo, no meio daquele zonzonar sem fim, sentia-se um totem. Daí sua teimosia em manter aquele ar pretensamente blasé, como se não quisesse – ou sua nobreza não pudesse – misturar-se à atmosfera exaltada dos plebeus. Queria deixar claro o seu lugar – e ali havia apenas pressa.

Enquanto tratava a equipe com gritinhos arrogantes de corar qualquer mamãe, o rapaz treinava sorrisinhos graciosos, trejeitos educados e piscadelas de olhos. Admirava-se, pois além de lindo, rico, venerado e dono de um topetão indefectível, Alfredo ainda encarnava o protagonista da novela das oito, Gustavo Bacini – protótipo de todos os anseios femininos. Sem se dar conta do lado cruel do ofício - e como é do feitio de todos os galãs - Bacini nutria esperanças desencontradas e ilusões vazias. Todas, no fundo de suas consciências, sabiam que aquela perfeição em forma de homem não poderia existir no mundo terreno, e se existisse, provavelmente carregaria uma Roberta em seu encalço. Triste, mas esse é o baque que a realidade impõe, e é com essa resignação que elas tratarão de encontrar seus devidos lugares.

Apercebendo-se disso, o dono de uma revista de fofocas tratou de encher com um balde d’água as esperanças da mulherada. Lançou a promoção “Passe um dia com Gustavo Bacini”, que escolheu uma, apenas uma felizarda, para simular uma gravação de novela. Voltemos a Mister Alfredo.

O rapaz, já devidamente arrumado, pegou seu BMW cenográfico e conduziu-o até o endereço da moça, numa visita surpresa.

- Blé, onde estou me metendo, que lugar fedorento! – pensou.

Depois de pedir ajuda a dois ou três passantes, Alfredo finalmente chegou à casa, que mais parecia um cortiço. Tocou a campainha. Eis que uma menina abre a porta:

- Ahn, como assim? Eu estou enxergando certo? Gu-gu-gustavo Bacini, o gostosão lindo e sensível da novela das oito?
- Bom dia, linda senhorita. Sim, eu mesmo. Quero convida-la para dar uma volta no meu carro, aceitas? – disse ele, num sussurro forçado que mais parecia uma vontade de fugir.
- Claro, vamos.

A menina, de batom dourado, rímel preto e esmalte cintilante, mais parecia uma drag queen. A presilha metálica de motivos florais e o laquê davam o toque brega ao visual, desesperando o ator.

- Putz, eu não acredito que vou ter que seguir este script... não posso conceber esta idéia. Logo eu, um cara que nunca pegou uma mocréia na vida... – refletia.

Dentro do BMW, que a menina jamais sonhou entrar, conversaram frivolidades. Depois de um passeio agradável – como não poderia deixar de ser - pararam no píer de uma praia, muito parecido com o da novela. O rapaz olhou para ela e revolveu-se em pensamentos pouco nobres. Todo cuidado era pouco para que a sensação de terror não atrapalhasse a atuação.

- Arght, não acredito nisso! Vou ter que beijar esta baranga. Tenho que pensar pelo lado bom: é a primeira e última vez. Ossos do ofício, fazer o quê? Vamos lá...

Beijaram-se. Beira da praia, sol, mocinha inclinada para trás. Mais clichê impossível.

Preocupadíssimo com o que os amigos iriam pensar sobre sua reputação, Mister Alfredo, que a esta altura abandonara Bacini na orla, voltou a guiar o carro, desta vez na direção oposta, a da casa. A do alívio.

Notando que o galã a levava de volta para o fim, a moça perguntou-lhe o que estava acontecendo.

- Pronto, minha filha. Acabou o prazo da promoção.
- Como assim? Que promoção?
- Passe um dia com Gustavo Bacini. Você preencheu o cupom a ganhou. Mas agora devo ir.

Pouco depois, chegaram de volta à vizinhança humilde da menina, que se sentia acordada de um conto de fadas eterno. Não por menos: o grande símbolo masculino da televisão, o totem celebrado pela mídia, havia alçado sua existência incansavelmente normal a um outro patamar, o das grandes heroínas.

Iludida, como toda menina pobre deve ser, começou a espalhar para os curiosos aquele papo transcendental de fumacinha na tevê, do Bacini atravessando a tela e da viagem aos pontos cenográficos. Ninguém acreditava na história, é claro. Para ela, no entanto, aquilo tudo se transformara na mais pura verdade.

Mister Alfredo, inconformado, discutia com seu empresário.

- Nunca mais faço nada que me lembre esta insensatez. Não quero mais. Ou mantenho a imagem ou meu nome vai para o lixo. Concorda? Já estou decidido: a partir de hoje, pobre só mesmo a um plasma de distância.

3 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

Vc escolhe logo o meu texto pra zoar (como vc mesma disse na leitura)...

E eu só posso me sentir lisonjeada!

Adorei a construção do ator por trás do Gustavo Bacini. Eu imaginava q ele era seboso, mas não a esse ponto (o q ficou ainda mais interessante). E tb me surpreendeu o fato de vc não ter usado a viagem pela televisão, deu ainda mais força à versão dele.

Gostei mto mesmo, coisa! Aliás, adorei!! Quem dera ser zoada mais vezes! XD

9/25/2005 4:40 PM  
Blogger Maria Laura disse:

Esse texto merecia muito uma segunda versão. O dominado e o dominador, no final, todos contam sua versão.

E o mais gozado disso tudo é que a versão do dominado endossa a dominação, enquanto a do dominador, justo dele, escancara e achincalha a dominação, que nem um reles frango assado de padaria.

Fazer da ilusão um objeto, da expectativa a lama, do mito a verdade: esse trabalho é maravilhoso, Priscila. Parabéns, lindinha!

10/28/2005 7:38 PM  
Blogger Paty disse:

A desconstrução da desconstrução, feita com maestria. Quando se pensava que não seria possível mexer na ironia do texto da Mari, vem a Priscilosa e surpreende. Transforma o sedutor Bacini num ator de trejeitos gays horrorizado por ter que distrair uma moça pobre e, conseqüentemente na cabecinha oca dele, brega.

Ótima a idéia da moça inventando os toques de realismo fantástico da história original para disfarçar a decepção, valorizando a fantasia como forma de fuga da realidade cruel e reforçando o caráter alienante da indústria cultural.

Destaque pra citação direta do texto da Mari na cena fatídica do beijo. Desafio respondido com louvor!

11/15/2005 4:31 AM  

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