27.10.05

Resposta da Aline ao Desafio VIII

Réplica


Cruel, criança? Sim, talvez eu tenha sido cruel. Mas foi pelo seu bem, pelo bem da sua essência primordial - para protegê-la. Não que você vá acreditar nisso.

Afinal, você sempre foi a mais bela, e não importava o que o reflexo dissesse a mim; aos olhos de seu pai, você venceria sempre, não havia dúvida. Mas por isso mesmo eu a amava como se fosse minha própria filha (a filha que não poderia ter saído de meu ventre), por ser você a criança mais bela, mais doce, mais adorável de todo o reino.

Você certamente não se lembra mais. Me pergunto se é assim para todas as mães.

Cruel? O tempo, este sim é cruel. Pois não demorou para que a mais bela criança do reino deixasse de existir, e em seu lugar surgisse esta pequena serpente igualmente bela. Uma serpente tola e ingênua, mas nem por isso incapaz de oferecer o pecado. A princípio você sequer se dava conta, não é mesmo? Fazia sem perceber - o corpo ainda longe de desabrochar, e no entanto já havia em seus olhos negros a malícia peculiar das fêmeas, o poder que você por certo era incapaz de controlar.

Em você, que sequer carregava meu sangue nas veias, refletia-se aquilo que eu já não era.

Cruel, este é o mundo em que vivemos; pois que outro adjetivo melhor expressaria o que eu vi e ouvi sobre a sua figura, criança? Os olhares de volúpia, os assobios, as palavras chulas que lhe dirigiam - e por que, responda, por que você insistia em não reagir? Não, aquilo a alimentava. Em vez de cobrir as pernas, as exibia ainda mais; ajustava a cintura dos vestidos, deixava os ombros à mostra como que por acidente. Soltava os cabelos da cor do ébano para que qualquer cocheiro admirasse. Não se atreva a alegar que não compreendia; não pense que vou acreditar. Reconhecia dolorosamente cada sorriso seu, criança - via neles os sorrisos que eu mesma costumava lançar.

E então, o ápice da crueldade: seu pai - seu próprio pai! - me decepciona daquela forma. Enquanto eu, me iludindo, acreditava que ele simplesmente fingia não perceber... não, é melhor que não saiba; pensaria ser mais uma de minhas artimanhas, não é mesmo? Pois desta será poupada; será uma vitória que jamais lhe entregarei.

Eu queria apenas protegê-la, meu bem, da maldade que nos ronda. Afastá-la daqui até que o mundo a esquecesse, devorar a vilania que já se entranhara em suas vísceras, sufocá-la com meu amor, se preciso fosse; trancafiá-la num esquife de cristal, eternamente pueril e minha.

Tudo em vão.

Aí está você agora, rindo escandalosamente nos braços de um estranho qualquer que a salvou de mim. Agora está feliz, rodopiando nesse salão de dança, não está? Eu também fui assim, meu anjo. Mas você mal sabe que tipo de atrocidades este gentil mancebo é capaz de cometer, quando longe da vista e da moral dos outros; até seu adorado pai era assim. Não que você vá acreditar nisso, jamais acreditou em mim, de qualquer forma. Jamais teve interesse em uma palavra que saísse da minha boca. Com um prazer sádico, me furou os olhos, me atravessou o peito com uma lança, e agora me obriga a dançar a noite toda, ouvindo a melodia deste seu infeliz conto-de-fadas.

Cruel? Sim, talvez eu o tenha sido. Mas de todas, Rosa Branca, você será sempre a mais cruel.

5 Comentários:

Blogger Maria Laura disse:

Sabe, não é só um outro ponto de vista, que afinal todo mundo tá certo segundo a sua visão. Trata-se de mais: é inversão. É o contar da história fazendo a gente discutir todas as nossas verdades. Se a mocinha não é boa, então cadê a lógica do mundo?

Você põe a gente nessa ilogicidade de forma brilhante, minha linda. Você coloca a gente diante da incerteza do mundo, do fim da era das verdades de uma maneira passionalmente fria (e isso NÃO É uma contradição em termos, pense bem). Você coloca todo o nosso novo caos numa grande contradição: você nos deileita ao destruir nossos castelinhos de areia.

Texto brilhante. Não apenas pelo sentido latente dele. Também, e muito fortemente, pelo caráter de desconstrução. Mas principalmente porque toca naqueles nossos pontos mais frágeis, no nosso espírito pós-adolescente de "eu sou eterno, eu vou viver pra sempre". Parabéns. Acho que é um dos seus textos que eu mais gosto.

10/28/2005 6:37 PM  
Blogger MôNiCa disse:

Vc acabou de inverter toda a minha concepção de bem e mal. Como a madrasta má pode ser assim, ter boas intenções? Isso subverte toda a ordem racional das coisas...
Ah, e crianças não podem ler esse txt...tadinhas, como transformar a Branca de Neve numa leviana? Só vc msm!
Bjinhos

11/05/2005 3:25 PM  
Blogger Paty disse:

Freudiano até a medula esse aqui! Jamais pensaria na relação da madrasta com a Branca de Neve como sendo de rivalidade feminina. Vai além da maldade pura e simples, é a disputa mais antiga do mundo: mãe e filha pelo amor do pai. E a filha representando a beleza e doçura perdidas da mãe.

De certa forma há um amor ali - distorcido, mas há. A madrasta tem lá sua parte de razão ao temer o destino da filha nas mãos de um estranho. E a possessividade psicopata de querer mantê-la sempre perto de si, o inconformismo com o fato de a filha que nem era sua ter crescido e a superado.

Sem contar a maestria de nos fornecer o ponto de vista da madrasta, mostrar que ela tinha lá seus motivos. E que a Branca de Neve não era tão santa assim...

Simplesmente sensacional, inusitado e intenso.

12/23/2005 3:49 AM  
Anonymous Anônimo disse:

...É por isso que eu AMO a inversão!!! XD

Não vou repetir td o q as meninas já disseram sobre esse sensacinal texto, mas uma coisa q me chama a atenção aqui é a forma como vc pega o maniqueísmo e o mata na unha. Simplesmente fantástica a escolha do tema, dando voz ao personagem mais odioso da nossa infância: a madrasta (q é praticamente a mesma vaca-louca-sem-coração em tds os contos de fadas). No teu texto, ela tem sentimentos, mesmo q seja uma forma um tanto distorcida de amor para com a filha q sequer é dela. Do mesmo modo, a princesa (q, apesar de ser a Branca de Neve aqui, tb é a mesma em tds as histórias) passa longe daquele arquétipo imaculado e angelical, modelo exemplar de mulher, mas praticamente um simulacro, posto q se distancia muito da realidade.

Foda foda foda!!!

1/12/2006 4:36 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

... Será que vale a pena dizer que, aos 3 anos, na brincadeira de Bela Adormecida, eu era a princesa, papai era o príncipe e mamãe era relegada ao papel de bruxa? XD

8/07/2006 7:26 PM  

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