1.4.06

Resposta da Maria ao Desafio IX

Nunca é Tarde

Pic, pac-Pic, pac-Pic, pac-Pic, pac...

Sigo cadenciada uma borboleta branca que voa acetinada. Estava tudo tão silencioso que só dava para ouvir o barulho dos meus bolados no chão xadrez. Das grandes janelas ao longo do corredor, seis pares de olhos e ouvidos de seis bruxas tortas me observam. Sinto um frio na espinha, como um relâmpago, e logo então já passou.

Algumas daquelas pessoas no coredor, todas insossas como picolés de chuchu com telefone, me fascinam porque têm borboletas no lugar dos olhos. Me encanto de um rapaz de chapéu-coco que limpa a boca de seu próprio esperma reprimido. Está sozinho, mudo, e eu nada posso fazer além do óbvio. "Fiat vox", eu digo, e ele cospe insultos a uma patricinha de cabelos roxos.

Sigo em frente e subitamente meus bolados escorregam em cacos de vidro. "Fala", eu consinto à bela moça, mas de seu corpo inerte não sai palavra nenhuma. Os estilhaços sob meus pés rangem o grito abafado de seu urbano spleen pós-moderno.

Mais alguns passos e a borboleta paira diante de um espelho. Me detenho, e o corredor pára de cantar meu pic-pac: emudecemos. E antes que eu possa fugir, meu reflexo é sugado para dentro de mim, pela minha boca -e sabe-se lá quando ele irá embora ou me sugará para dentro dele.

A borboleta continua. Entalada de mim, observo a jovem que se inclina para trás diante da tevê chuviscada, e sonha em voz alta. Ela se cala, e o comercial da Unimed faz parir um pai. Eu mesma me comovo, mas a borboleta continua a puxar-me as pernas com seu fio invisível: há tão mais que se ver e fazer ouvir...

Como aquela jovem que, deitada em posição fetal, assobia uma viagem pelo infinito entre suas pernas frouxas. Meu reflexo se inquieta, ao que a moça responde com um suspiro exausto e regozijado. É deixá-la a si, ainda que ela seja interessante. O pic-pac continua.

Um rapaz com coqueiros ao fundo me acena familiarmente. De sua esquerda, se desprende o corpo de um rapaz bravo que marcha em minha direção. Seguro seu braço, como uma irmã enérgica. "Ele não é escroto", eu insisto, mas basta que eu o solte para ele recomeçar seu firme caminhar. O outro me sorri -meu reflexo parece conhecê-lo.

Uma das bruxas à janela espicha o pescoço, e atrai a borboleta a um canto do qual eu não tinha me apercebido até então: um dramático funeral. A defunta berra, mas só eu a pareço ouvir. Soco meu bolados no chão com mais força, tentando abafar a insistência lamuriosa daquele espetáculo, enquanto outra bruxa atira uma bolinha de papel sobre a moça inclinada.

A borboleta pára, e solene se sustenta num discreto ondear. Meu reflexo se agarra à minha garganta e meus bolados efervecem: no fundo do corredor, um incongruente super-anti-herói valsa incerto com um anjo castanho vacilante. Sinto vontade de pô-lo no colo, desvirginá-lo, niná-lo até dormir. Mas sua capa vermelha o eleva ao intangível, e a borboleta segue.

O pic-pac não cessa. Meus bolados patinam cadenciados pelo corredor xadrez. Há milhares de pessoas mudas nesse corredor, e a cada instante brotam mais -umas das outras, do céu azul-acinzentado, do apeyron disforme. E enquanto houver borboletas felpudas e bolados entre mim e o mundo, o corredor não parará de se reproduzir - e eu andarei nele.

Da janela, cinco pares de olhos e ouvidos de cinco bruxas tortas aguardam que eu lhes traga, da minha jornada, os bolsos cheios de cinzas e purpurina. Atrás de mim, um clac-clac estanca.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

...

*Enxugando a água que acumula nos olhos e engolindo o nó que meu reflexo deu na minha garganta.*

Estou orgulhosa, manitchka. A mais feliz e exultante andarilha de todos os corredores de chão xadrez!

I could NOT have it so much better. Tu me viste direitinho, na minha eterna perseguição guiada à bela borboleta acetinada. E também viste todas aquelas pessoas de olhos de borboleta que, enquanto cruzam comigo pelo corredor, só fazem me pedir uma chance de serem ouvidas. E de falarem ao mundo.

Bater os bolados bem pic-pac, ser levada pela borboleta e falar com essas pessoas. Entendê-las. É pra isso que estou aqui. E você, no seu clac clac de saltos, está aqui pra me acompanhar nessa missão.

O rapaz de chapéu-coco, a bela moça dos estilhaços, meu reflexo, a mulher inclinada, o papai, a moça da viagem pelo infinito, os rapaz sorridente e o bravo, a defunta e o anti-herói; todos eles me mandam te agradecer. Estão orgulhosos de lhe ajudarem no clac clac.

Sem mais palavras à altura desse presente MARAVILHOSO. Estou muito muito muito lisonjeada. Feliz! Muito obrigada, mesmo!

4/01/2006 10:25 PM  

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