25.12.06

Resposta da Aline ao Desafio XVII

Preliminares


É, meu caro, você está morto. Conhece este lugar, não conhece? O condomínio subterrâneo com seus eternos habitantes. Você veio aqui pela primeira vez com uns 9 ou 10 anos, quando aquela tia gorda do interior rolou escada abaixo e quebrou o pescoço – mas isso não importa; o que importa é que foi aqui (você tem certeza disso) que tudo começou.

Os olhos dentro do caixão podem não ver mais, mas você vê e acompanha seu próprio cortejo, não sem uma pontada de orgulho. A fila é longa, estão todos aí: os filhos e as mulheres e as mulheres sem filhos, unidos na dor de forma misteriosamente pacífica. Você admira a variedade de gerações, do neto mais novo no colo aos passos cadenciados e olhar severo de Marieta, a primeira – ou talvez a segunda. A compostura de Marietinha contrasta maravilhosamente com as lágrimas barulhentas de Cida, pobrezinha, jovem demais para ficar viúva (mas ela sabia onde estava se metendo, diabos, você não tem culpa nenhuma).

Você observa as mulheres todas. Todas lindas, cada uma à sua maneira; todas desesperadamente amadas pelo tempo de suas vidas a dois. Você compreenderia se elas o odiassem, mas não. O esquema sempre se repetia: uns dois meses depois do divórcio o rancor já tinha ido embora e você virava o bom companheiro e a boa lembrança. É um consolo que lhe resta agora, saber que vai fazer parte da vida de todas essas moças (e de todas essas crianças) até que elas venham se hospedar em sua última morada.

E falando nela, ali está: você, com seus olhos de espírito, já enxerga seu anjo no fim deste corredor de estrelas e cruzes. Ela o aguarda, a túnica curta exibindo-lhe as coxas e o busto, parecendo mesmo tímida com seu rosto baixo e as pontas de suas asas levemente murchas.

Foi ela (não vamos discutir o sexo dos anjos) o seu primeiro grande amor, aquele que você procurou por toda a sua longa e intensa vida, e agora você se sente até bastante recompensado por todas as eventuais decepções do caminho. Porque todas as vezes em que uma mulher esteve sobre o seu corpo, por mais linda que fosse, era a imagem dela que você buscava, da sua deusa de mármore que passa todos os dias (há 70, quiçá 90 anos) olhando quase curiosa para a última cama em que você vai deitar.

E agora (já estão baixando seu caixão, veja) você finalmente vai ter a pálida senhora sobre o seu corpo, do jeito que você sempre quis: sentada sobre o seu quadril, alisando seu tórax com as palmas das mãos, os nove dedos (algum moleque deve ter dado conta do indicador da mão esquerda) lhe fazendo cócegas como longas plumas brancas.

A Marieta certamente diria que esse há de ser seu castigo eterno: você finalmente encontrou uma mulher a quem nunca vai conquistar. Você gostaria de poder explicar para ela que a conquista, para você, era como um orgasmo – o ápice do prazer, seguido daquele (des)conforto familiar e da consciência de que a luz do banheiro ficou acesa e a conta aquele mês tinha vindo altíssima. Não, essa nunca foi a melhor parte para você. Mas a Marieta jamais entenderia, de qualquer forma. Ela nunca entendeu que a felicidade para você estava na corte, na brincadeira do flerte; em ver que a garota já era sua, mas ainda se recusava a admitir. E é por isso que agora, ao ver o rosto eternamente jovem de sua deusa de carrara fechar a escuridão de seu jazigo, você sabe que chegou ao paraíso.

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