25.11.06

Resposta da Aline ao Desafio XVI

Nômades


Por muito tempo era de hábito que a mãe a levasse até o grande parque do centro da cidade, um oásis verdejante em meio ao caos do trânsito e dos escritórios. Quando se cansava de correr pelos gramados atrás dos muitos gatos que habitavam o local, a menina vinha se sentar junto à mãe e, como de praxe, sabatiná-la com sua curiosidade infantil. A primeira pergunta era sempre a mesma, e a mãe sempre a respondia com a mesma história. Muito tempo antes, quando não havia os carros, o prédio, a cidade ou mesmo as pessoas, a grande rainha dos gatos (que era mãe de todos eles) trouxera seu vasto séquito até o lugar onde fora criado aquele parque, uma terra sagrada para os felinos.

Mas a mãe jamais respondia quando a menina, esperta para a idade, lhe perguntava onde estava a grande rainha e, se não estava no parque, por que abandonara todos os seus filhinhos naquele lugar cercado de barulho e fumaça. Tampouco havia resposta quando a pequena perguntava sobre o pai que nunca vira.

O tempo passou; a menina cresceu e virou moça. Os passeios foram minguando pouco a pouco até cessarem. Já as perguntas, estas aumentaram em freqüência e intensidade, quanto mais as respostas não viessem. Quando a jovem, levantando a voz, perdia a paciência com a quietude, a mãe apenas se encolhia e chorava até que o assunto sumisse na bruma das horas.

Mãe e filha se afastavam; entre elas a faculdade, o emprego, os namoros fracassados, a desconfiança. A jovem, arredia, esquecia da vida e da raiva nas ruas. A mãe, enclausurada na casa, chorava pela mágoa antiga que ninguém seria capaz de compreender. Deixou de comer e adoeceu. Definhava dia após dia, vítima de uma dor silenciosa. Pela primeira vez, a mãe se viu dominada pelo medo: o momento chegara cedo demais.

A filha, enfim, percebeu o que estava acontecendo. Sem entender, ralhou, gritou, deixou-se desesperar. Chorando como a mãe, abraçou-a, implorando pela verdade, implorando pela resposta.

A mãe apenas olhou em seus olhos. E a filha entendeu.

Na noite seguinte, caminhando sozinha pelo centro da cidade, a jovem pulou as grades e pisou no que um dia fora o gramado fresco e cheio de vida do parque. Agora, naquele lugar, havia apenas um matagal deserto e escuro, cercado por canteiros de obras que avançavam impiedosamente. Ao seu redor, a jovem encontrou centenas de pares de olhos brilhantes e pequenos. Os gatos a esperavam.

Ela seguiu pelo caminho árido cortado no mato, ignorando o vulto dos homens entre as árvores – quatro membros da escória das ruas com suas roupas esfarrapadas e barbas sujas, seus dedos magros e seus poucos dentes ansiosos. Eles, como os gatos, a acompanhavam com o olhar, e como os gatos esperavam pacientemente pelo momento certo em que ela deixaria cair sua guarda.

O momento chegara na forma de um filhote morto, o sangue ainda quente encharcando sua pelagem fina e macia. Ela parou diante da fonte quebrada e se abaixou para recolher o cadaverzinho entre as mãos, e então os quatro saltaram em bando, num único movimento coreografado desde tempos imemoriais.

Os gatos, com suas pupilas rasgadas e alertas, asistiram a tudo sem se moverem.

Na manhã seguinte, a mãe encontrou com alívio e uma pontada de orgulho os corpos dos cães de guarda no chão do parque vazio, o couro fino dos quatro dilacerado pelas mesmas garras precisas e afiadas. Agora, no fim de seu reinado, ela podia deixar para trás a culpa por abandonar seus iguais em troca de uma paixão proibida e fulminante. A herdeira do trono, a mais poderosa de suas crianças, finalmente despertara. Seu povo estava seguro. Languidamente, a mãe deixou seu corpo desfalecer sobre a areia, deu o sétimo de seus últimos suspiros e sorriu.

Ninguém na cidade jamais descobriu para onde os gatos foram.

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