20.11.06

Respostas da Maria ao Desafio XV

O Amante Pródigo

Você arrancou minha alma dos trilhos.

Você era o caçador, eu era a lebre, e eu alimentei o seu esporte como era minha sina, até você me abater. E eu sangrei, e eu agonizei, e eu esperei que você achasse que jamais seria feliz novamente sem mim. Não pra te ver sofrer, mas pra te ver feliz comigo. Eu quis você, e você só seria se eu fosse. Eu quis que você fosse. Mas a pólvora era certeira, tinha-se acabado, e se alojou na minha carne. Ela queimou e gelou, feriu e fechou, e enfim a lebre estava morta.

E como é traquina o tempo, essa criança que gosta de brincar de deus, esse genioso curandeiro. Disseram que ele havia de fechar as feridas, varrer a dor do meu peito, e assim ele fez. Mas ninguém me disse (talvez não conste do “Como Consolar Alguém em 10 Lições”) que o tempo não tiraria a poeira das mãos e dos olhos de meu doce algoz. Não estava no contrato que havia mesmo um dia da caça, e que eu teria a revanche que jamais pedira. Sem o caçador, a lebre morta não tem razão, e a lebre viva não tem porquê. E é por isso que eu lhe quero bem.

O tempo não fez por você o que fez por mim, fez-lhe o inverso. Abriu a dentadas, lento e constante, a chaga triste dos bocados que você não sorvera. Tirou-lhe o que você não me deu, e deixou-lhe um vazio porque eu não lhe alimentava mais, porque eu era agora a corça de outro senhor.

E hoje você me mostra a artimanha do tempo.

Abre em largo sua japona e exibe a deformidade que lhe fez o doutor das agonias, o que deveria abater os aleijões e restituir os risos e as caças. Em lugar dum riso escarninho ou da ausência pura, um esgar de pavor e súplica se desenha em mim. O obscurantismo de seu sofrimento açoita-me como se eu mesma o tivesse forjado, simplesmente porque não o pude evitar. E você justifica seu desabafo, breve e estridente harpia invisível, com a metáfora ancestral da descarga do cansado viajante.

Mas há que lembrar do que nos ensinou Lavoisier. A lágrima nunca se perde, apenas se transforma. E eis que assim, por mais que os olhos tendam a subverter esta ordem, no fundo volto a ser tua lebre.




Dignidade

Até aquele dia, nossos lençóis costumavam ser os mais aconchegantes deste e de todos os mundos. Eu me deitava logo depois dela e acordava logo antes, acreditando ser aquele o máximo de perfeição que o amor poderia alcançar. Mas os seres humanos têm razões de que nem o mais fiel dos amores poderia dar conta ou tolerar. Motivações cujo nascimento nem uma dignidade felina consegue prevenir, justamente porque são sentimentos, embalados e acolhidos como a mais ímpar criação.

Ela se mexeu na cama ao meu lado e me despertou. Nesse dia, como em todos os outros, acordaria abraçada comigo, me envolvendo como ao seu irmão ou seu bebê. Meu extraordinário senso periódico, herança diferencial de meus ancestrais, me dizia que já era hora de ela levantar. Fazia –e ainda faço- questão de ser sua primeira visão pela manhã. Ironia.

Deslizei meu corpo pelo dela, com um quê de perversidade, para sentirmos ambos a maciez do corpo um do outro. Aproveitei o movimento e ergui a cabeça, para que ela melhor ouvisse meu chamado e mais rapidamente esbarrasse com meus olhos. Usei meu miado mais doce, e ela desvelou os olhinhos exaustos sobre os meus. Parecia que me namorava a distância, seu par perfeito, seu alter-ego.

Deixei que saciasse a fome de mim, oferecendo, apaixonado, minha cabeça e minhas orelhas ao afago de suas mãos desamadas. Ela se entregava ao toque, enquanto eu me deleitava luxuriosamente entre seus dedos. Por fim, já me dando conta do adiantado da hora, pulava para a bancada da escrivaninha e a convencia de que minha noção de tempo era incorrigível.

Assim que ela deixou o quarto, pus-me a tomar meu banho matinal, longe das vistas da minha jovem protegida. Tinha dignidade suficiente para não me expor –não sem um motivo cautelosamente ponderado- diante daquela criatura que em mim se apoiava, carente, solitária e ansiosa por uma imagem velada de uma real tentativa de dominação. Eu a aceitara desde a minha tenra idade porque ela jamais teria forças para me dominar, em verdade. Sua inegável construção de imagem não lhe permitiria abster-se da apologia da liberdade, e isso era um fato. Mas eu não contava com as verdades cegas que só o amor dos homens pode forjar.

De volta ao quarto, nua e envolta na patética toalha, os cabelos empastados na cabeça, era uma figura frágil e submissa. Sem qualquer senso de estética, escolheu para si uma roupa que me aconchegasse irresistivelmente –era fato que, quando ela a vestia, eu era arrebatado por um desejo incontrolável, que me fazia enroscar em seu regaço como uma verdadeira pelúcia. Percebi que ela não iria para seu passeio matinal costumeiro –do qual voltava sempre pouco depois do almoço-, pois sacou de minha guia e de meu compartimento para transporte. Presumi que fôssemos ao doutor. Não estava absolutamente errado.

Depois da viagem curta, durante a qual ela ouviu sua traquitana de música e me afagou o pescoço por uma fresta no compartimento, adentramos uma sala de espera com fotos de animaizinhos. Até ali, mesmo que não familiar, tudo me parecia normal.
Foi quando uma mulher jovem, de cabelos cor de cobre e olhos fendados, surgiu na soleira de uma porta. Ela fixou o medonho olhar em mim, ao que meus pêlos responderam com um franco eriçar. Seu sorriso parecia construído com marfim roubado, a carne de aspecto branco e tenro como o de uma perdiz. E eis que a minha protegida se levanta e vai em direção àquele monstro. Um mau presságio.

Entre sorrisos, ouço meu nome ser pronunciado. O monstro faz uma menção à palavra cirurgia, ao que minha jovem presta atenção com muito cuidado. Sei que não devia estar aqui. Devo sair, penso inquieto, dentro de minha prisão. Busco em vão uma frincha pela qual possa escapar. Dou voltas pelo cárcere, no modesto espaço que ele me permite. É inútil. Chamo minha protegida, esperando que o bom-senso e seu imenso amor fossem ativados pela minha voz. E ela enfim me atende. Vindo em minha direção, acredito que ela me libertará do pior, mas... Ao abrir o compartimento, ela segura minha guia e a entrega para o monstro.

Tento, por um instante, me libertar, mas percebo que meus esforços não se converterão em sucesso. Respiro fundo, busco os olhos de minha jovem, e neles procuro a certeza de que estou salvo por nosso amor recíproco. E é neste momento, frágil e vencido, que a traição acontece: o monstro me apunhala.

Sinto a agulha se enterrar na minha carne, enquanto o monstro me imobiliza, prevendo minha reação à dor e à desonra. Nos olhos da minha jovem, um lampejo de confiança e alívio vai ficando turvo e embaralhado ante minhas vistas. Luto contra o súbito sono que me acomete, vigil, não posso tombar. As luzes tremeluzem, e ela me cobre com o olhar sereno, porém curioso. O monstro já não me segura mais. Eu mesmo já perco o espírito da fuga. O agouro permanece, e minhas patas se dobram sobre si mesmas, a luz branca se acende, e já não há mais monstro ou sala, e é frio onde me deito, só os olhos de minha jovem eu posso enxergar, eu posso. Eu mio, mas não me ouço, não sei se o que me falha é a voz ou o ouvido. E os olhos dela, tranqüilos, pacientes, aguardam...

Quando despertei de meu torpor, os olhos de minha protegida já não estavam sobre mim. E eu tinha frio. Minha boca estava mole e eu não podia chamar quem quer que fosse. Não sentia meu corpo, minha vista embaralhava, e eu voltei a cair. Uma, duas, três vezes, até que despertei e pude entoar um miado tímido e débil. Corri os olhos ao meu redor, e percebi a desagradável presença de meus dejetos no entorno de meu corpo. Quis me levantar para dar fim àquele impropério, mas minhas patas não se mexiam. Senti-me só. Onde estaria agora aquela criatura a quem ofereci minha vida e docilidade?

Muitas horas depois, creio eu, ela apareceu. Vinha com um sorriso para mim, e um olhar atento a uma oriental de cabelos ruivos, que lhe dizia palavras que eu não pude registrar. Posso ter ouvido meu nome, ou algo que achei ser direcionado a mim. Não estava muito certo. Sentia vergonha de exibir minhas excrescências diante da minha amada, que era também meu algoz. Como se nada houvesse, ela pôs um plástico em meu compartimento e moveu-me lá para dentro –e só então senti que algo me faltava, meu corpo estava incompleto, minha percepção estava alterada.

Quando acordei, estava já em casa. Minhas patas da frente já me obedeciam. Das de trás, nenhum sinal, exceto por um ligeiro desconforto, como se eu tivesse sido costurado. Novamente, ali estavam meus despojos, lembrando-me de que a minha dignidade se perdia, se esvaia na medida em que eu arrastava metade do corpo com as patéticas patas dianteiras. Ela me acarinhou e me deu remédios. Alimentou-me e limpou-me –e nada poderia ter-me machucado mais.

Aos poucos, eu recuperei os movimentos. Retomei minha rotina e minhas funções. Jamais me permiti nova humilhação como aquela. A jovem sorri para mim, todos os dias, feliz por eu estar ainda ali com ela. E você, leitor, deve estranhar como depois de semelhante infâmia eu permaneço ao seu lado. Já não mais por pena, ou por proteção, eu lhe asseguro. Tirando um arremedo de amor que sobrou, fico porque perdi a vontade. Porque me foi tomado aquilo sem o que eu jamais poderia me igualar aos meus pares, ou encarar a vida lá fora, sequer por um instante. Me foi tomada a dignidade. E eu jamais serei o mesmo. Nem os nossos lençóis o serão.

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