8.9.06

Resposta da Maria ao Desafio XIV

Perverso Polimorfo

Vinte e quatro de agosto de 2002. Os pequenos olhinhos escrutinadores, vítreos, escondidos sob as cortinas de largos anéis negros, olham como que para um triste desenho. Quando chegaram, encontraram-na diante do espetáculo com a boneca-bebê segura pela perna de plástico, e trataram de levá-la rápido para outro canto qualquer –como ela se não estivesse ainda suficientemente manchada do sangue viscoso que escorria já frio pelas paredes. Um dos homens atraídos pela denúncia sentiu gelar a espinha à vista daquele mirar tão placidamente caótico. Fez um sinal da cruz e se declarou vítima de um mau agouro. Ninguém lhe acreditaria, não fosse pelas palavras aleatoriamente ditas pela pequena num momento em que tudo pareceu se encaixar.

11 de maio de 2002
Querido diário,
Hoje brinquei com a Clarinha a tarde toda. Com as minhas Barbies porque ela não trouxe as dela. Eu não gosto muito de Barbie. Gosto de bebê.

16 de maio de 2002
Hoje mamãe me botou de castigo. O Edu quebrou meu lápis de cera e eu bati nele. Aí a professora me levou pra sala da diretora e chamou a minha mãe de novo. Essa professora não gosta de mim e vive me enchendo. Eu odeio ela.
A mamãe nunca me dá razão.

24 de maio de 2002
Querido diário,
Papai voltou de viagem.
Fui buscar ele no aeroporto e depois ele levou eu e a mamãe pra jantar. Ele me trouxe uma boneca de bebê, que é a que eu mais gosto. Mas a Clarinha não gostou muito.

25 de maio de 2002
Querido diário,
Mamãe fez espinafre pro jantar.
Papai veio mais cedo pra jantar e depois ele e a mamãe lavaram a louça e disseram pra eu ir dormir. Mas eu só vim pro quarto. A Clarinha disse que eles estão namorando.

30 de maio de 2002
Querido diário,
Hoje fiz um desenho para a minha pasta secreta. Ficou muito bom. A Clarinha que me ajudou. Quando eu crescer, quero ser pintora.

06 de junho de 2002
Querido diário,
Papai voltou da França. Ele disse que um dia vai me levar lá pra conhecer e que é muito bonito. Quero ir lá com o papai.

10 de junho de 2002
Querido diário,
A professora chamou a mamãe na escola, mas eu não fiquei de castigo. O papai não deixou e ela não pode fazer nada.

19 de junho de 2002
Querido diário,
A mamãe e o papai brigaram. Eu comi sopa.

23 de junho de 2002
Querido diário,
A Clarinha e eu brincamos de cabaninha. Foi a melhor brincadeira que a gente fez. Ficou tudo no escuro e a gente acendeu uma lanterna e fez sombra na parede. Mas ela teve que se esconder quando a mamãe chegou. A mamãe não gosta da Clarinha.

26 de junho de 2002
Querido diário,
O Caio disse que eu era maluca. Eu dei um soco nele e rasguei o caderno dele. Saiu sangue e tudo. Foi bom. Bem feito.
Mas a mamãe me botou de castigo de novo. O papai está viajando e não pode me salvar. Eu odeio quando ele fica longe.

30 de junho de 2002
Querido diário,
Hoje ajudei a mamãe a matar as formigas. Botei pasta de dente na entrada das casinhas delas. Peguei uma formiga no dedo e fiquei puxando as patinhas dela. É engraçado como ela fica se mexendo toda rápido.

4 de julho de 2002
Querido diário,
Vou trocar de escola. O papai e a mamãe foram lá hoje. Pra mim tudo bem. A Clarinha vai comigo.

12 de julho de 2002
Querido diário,
Você e a Clarinha são meus melhores amigos

19 de julho de 2002
Querido diário,
A mamãe foi no médico. Eu não fui com ela porque estava na escola.

25 de julho de 2002
Querido diário,
Hoje mamãe se assustou. Eu peguei um vidro que tinha veneno das formigas e ela disse que ia esconder. Não adianta, eu acho de novo.

30 de julho de 2002
Querido diário,
Estou com muita saudade do papai.

6 de agosto de 2002
Querido diário,
Hoje a mamãe disse que eu vou ganhar um irmãozinho. Papai ficou muito feliz.


10 de agosto de 2002
Querido diário,
Hoje mamãe me bateu. Joguei um prato na parede porque ela disse que a Clarinha não existia. Ela não sabe o que a Clarinha pode fazer.

16 de agosto de 2002
Querido diário,
Papai e mamãe brigaram de novo. Bem feito. A mamãe me levou num médico sem o papai saber. Ele me perguntou um monte de coisas sobre a Clarinha, pra poder dizer que eu não posso mais brincar com ela. Foi a mamãe que mandou ele dizer. O papai gosta da Clarinha porque ela é minha amiga.

19 de agosto de 2002
Querido diário,
Mamãe me bateu de novo. Ela vai ver só.

20 de agosto de 2002
Mostrei meus desenhos para a mamãe. Sabia que ela não ia gostar. Ela chorou e me perguntou porque eu fazia aquilo. Eu fiz porque sabia que ela não ia gostar.

21 de agosto de 2002
Querido diário,
Eu e a Clarinha fizemos um mapa. Vou esconder um tesouro no porão, debaixo do alçapão.

22 de agosto de 2002
Querido diário,
O papai viajou.

23 de agosto de 2002
Querido diário,
Fiz um suquinho hoje pra mamãe. Ela tomou, mas acho que não gostou muito. Ela nunca gosta das coisas que eu faço. A Clarinha me falou onde estava escondido um ingrediente especial e eu botei lá. Agora ela acredita na Clarinha porque ela viu a Clarinha.


O diário foi encontrado no quarto da menina, juntamente com desenhos que denotavam cenas muito mais cruéis do que poderia conceber uma criança daquela idade. O pai, em estado de choque, pouco pode dizer além da repetida palavra “monstro”. Na certidão de óbito da mulher, consta como causa mortis a ingestão forçada de substância tóxica e conseqüente corrosão das paredes do trato digestivo, em conseqüência de um assalto à casa. O feto de treze semanas e as toscas incisões na cabeça e no pescoço não foram incluídos no laudo pericial, a pedido quase inexistente do pai. Na pasta secreta, inúmeros desenhos ajudaram a traçar um retrato falado da assassina, também conhecida como Clarinha, que será duramente procurada e jamais encontrada.

2 Comentários:

Blogger L. disse:

Uma coisa que acho fantástica no seu texto, Laurinha, é a crueldade. Nada psicótico ou doentio - é a crueldade infantil catalizada por algo chamado "Clarinha".

A sua menina não é a primeira nem a última (muito menos a única) a querer castigar a mamãe, a tratar o mórbido como se fosse corriqueiro. As Clarinhas é que são mais raras, no fim das contas.

(E eu ainda ouso perguntar até que ponto elas são necessárias para o processo. Porque é isso o que realmente dá medo.)

9/12/2006 5:02 PM  
Anonymous Anônimo disse:

ahahahah adorei o textooo...

muito booommm... a estrutura do diário, foi muito legal.

Teve um filme sobre esse negócio de amigo-secreto-do-mal-que-manda-na-criança, não tem? Acho que se chama "O Amigo Oculto". Ai, nem vi. Não gosto de coisa de terror. Aliás eu falei que não ia ler essas histórias de terror, né? Não resisti... agora vou ficar com pesadelo!!!! ahahahahhaha

abraços

9/14/2006 1:19 PM  

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