28.8.06

Resposta da Liliane ao Desafio XIV

Pupa


A primeira impressão que conseguiu distinguir no caos que invadia sua mente recém desperta foi a dor. Algo no fundo de sua cabeça gritava em meio silêncio, como uma sirene extremamente aguda à distância. Encolheu o corpo, tentando alcançar a proteção fetal e foi como acabou percebendo estar deitado numa superfície lisa e fria – o chão, muito provável. E deu-se conta da dificuldade em se mover, os músculos parecendo atrofiados, braços dormentes presos em um abraço grotesco. Camisa de força.

Sentiu a consciência oscilar, fraco que estava. Arregalou e piscou os olhos, tentando forçar-se a despertar. A escuridão, no entanto – fosse cegueira, fosse o ambiente –, manteve-se inabalável e o tragou outra vez.

Acordou, incapaz de saber se o último desmaio acontecera minutos ou dias antes. A dor e o breu persistiam, enquanto a dormência se alastrava; alcançara um estado tal que já mal sentia os dedos. Um gemido baixo escapou de sua garganta quando começou a se arrastar. Mover-se causava uma dor excruciante, quase tão violenta quanto o esforço que fazia para alcançar o que quer que pudesse explicar sua situação. Não julgava a possibilidade de seqüestro plausível e não se lembrava de qualquer passagem por alguma instituição mental. A bem da verdade, não conseguia trazer qualquer lembrança mais nítida à tona, mas supôs tratar-se do choque momentâneo.

Deu de cabeça naquilo que servia como parede em seu cárcere, e teve um sobressalto ao senti-la tremer, um barulho de ferro batendo contra seus nervos e arrepiando seus pêlos. Instintivamente, sua garganta expulsou um grito rouco, que mal pôde identificar como seu, enquanto uma de suas mãos, quase tão cega quanto seus olhos, torceu-se sob o tecido e procurou por aquilo que descobriu ser uma grade. Fê-la calar, assim, e logo o silêncio e o alívio tenso permitiam que ele ouvisse as batidas arrítmicas de seu próprio coração, a respiração curta e acelerada, de quem busca se acalmar. E a outra, que lhe fazia eco.

Tomado de súbito por um desespero incontrolável, encolheu-se tanto quanto era possível, batendo o corpo com força contra a rede metálica, trazendo a explosão de sons de volta; precisava calar aquela impressão, livrar-se dela a qualquer custo, atrair ajuda ou piedade, fazer com que aquilo tudo ao seu redor ruísse e o deixasse em paz.

Um calafrio percorreu sua espinha, culminando numa terrível ânsia de vômito. Em movimentos espasmódicos, sacudia a grade, os fragmentos de raciocínio dividindo-se entre uma tentativa inútil de controlar o súbito acesso provocado pela paranóia e o gosto amargo de bile que se prendia à sua boca.

Seu visitante inesperado pareceu silenciar, assim como todo o resto do mundo.

Foi o cheiro forte de vômito que o trouxe de volta. Tossiu, tomado por asco, ao lembrar do que acontecera. Concluiu, no entanto, que devia manter-se quieto, de forma a não despertar a atenção do outro, fosse o que fosse. Usando o gradil como apoio, atravessou um processo lento e sofrido para se erguer sobre as pernas, frouxas e trêmulas. Foi com custo que conseguiu, mas não ousaria arriscar passos, não ainda; uma vitória por vez. Podia jurar que esboçava um sorriso de contentamento, mas não era capaz de precisar a forma como os músculos de seu rosto se torciam – sentia-se desacostumado consigo mesmo, como se o próprio corpo fosse um estranho, preso em cegueira e fraqueza.

Em frangalhos, perscrutou o espaço através do único meio com o qual podia contar: seus ouvidos. Tentou, primeiro, acalmar-se ao máximo, posto que precisaria de concentração; o odor de ferrugem que emanava de toda parte, porém, não era de grande ajuda. Ao menos, não ouvia nada, nenhum sinal do outro – e esperou por muito tempo até ter certeza. Pôs em prática, então, a segunda parte de seu plano de sobrevivência improvisado, que envolvia arrastar-se ao longo da grade para tentar, de alguma forma, determinar o tamanho de sua prisão e, quem sabe até por milagre, conseguir encontrar um meio de sair dali.

Tentou pensar em alguma forma de marcação, e foi só aí que tomou consciência plena da própria nudez, exceto pela maldita camisa de força. E ela mesma já parecia parte de seu corpo, braços insensíveis grudados a um tronco moribundo, que lhe garantiam uma percepção distorcida de leveza e liberdade. Quis rir do próprio ridículo, da situação cada vez mais surreal em que se encontrava. Acabou por emitir um guincho estranho, que faria lembrar um choro, feito algum exercício de imaginação.

Deu início ao trajeto, as pernas bambas sustentando muito pouco de seu peso; jogava-se quase por completo contra seu ponto de apoio, com a decisão de quem tem quase nada a perder – quanto ao marco inicial do percurso, julgou que a poça de vômito viria a calhar. A cada passo torto, praguejava mentalmente contra o idealizador daquele martírio. Afinal de contas, que fizera ele para estar ali? (E grunhiu quando uma voz, vinda do fundo cada vez mais distante de sua consciência sufocada pela dor, comentou que ele tampouco fizera qualquer coisa para não estar naquele lugar.) Mas não perderia mais tempo com isso; o que lhe importava era o presente, cada segundo que se desdobrava naquele lugar onde o tempo parecia inexistir. Aos poucos notava como lhe faltavam referenciais: as memórias pareciam vagas, como se cobertas por uma névoa espessa; a fome, uma constante, não aumentava ou diminuía, mesmo após ter expelido uma quantidade considerável de bile – o que denunciava o estado de seu estômago. Só podia ter uma noção vaga de que o tempo efetivamente passara ao estudar os efeitos do aprisionamento sobre sua musculatura, que já estava dormente e dolorida o bastante para que ele se sentisse como um grande naco de carne disforme apoiado em pernas lassas. Gemeu baixo, dividido entre agonia e uma graça irônica, apenas para notar que, do ponto que alcançara, já ouvia novamente a respiração alheia.

A reação imediata de seu organismo foi outra onda de enjôo, mas conseguiu controlá-la após um violento acesso de tosse. Acabou avançando, trôpego, na direção que seus ouvidos apontavam. Acompanhava o chiado lento e agudo, que mais parecia uma versão grotesca de um ataque asmático. E, conforme avançava, seu olfato – que já se tornara quase metade de suas opções sensoriais – descobria, a contragosto, um odor putrefato e inumano, em meio ao qual conseguiu distinguir fedor de urina e excrementos. Sentiu suas entranhas revirarem, em resposta, mas não havia o que ele pudesse fazer.

Colado à grade, teve certeza de que alcançara o outro, e permitiu que as pernas, exaustas, cedessem. O chio, afinal, vinha de baixo, do chão frio e, àquele ponto, enlameado. Vinha do outro lado da grade, com um recorte cada vez mais errático e urgente.

Percebeu o óbvio: era medo. Puro e instintivo.

Sua presença assustava o outro tanto quanto ele lhe apavorara. Imersos naquele negrume, pouca noção tinham de qualquer coisa além da ameaça iminente. E, enquanto o outro começava a guinchar e bater o corpo debilmente contra a grade, sentiu uma vontade louca de gargalhar, algo em seu cérebro clicando e torcendo, ligando os pontos num átimo. Bateria palmas, se pudesse, para o executor daquela obra de arte, que colocava a sua frente o que o homem buscou por toda a História: um retrato fiel de seu futuro. Era aquilo que o esperava – e, num último lampejo de consciência, pensou se ele mesmo não estava se tornando a imagem do destino de alguém. Depois disso, explodiu em um som imundo, que era sua nova concepção de riso.

Houve o momento em que o outro se calou em definitivo. Veio a luz morna que banhava o largo campo de corpos nus e disformes, de tempos em tempos, marcando fim e início de cada ciclo. Mas não se fez diferença alguma para ele, que já rompera o casulo.

Agora, não era mais nada além do outro.

1 Comentários:

Blogger Aline Brandão disse:

Isso é muito você. Não que você seja freaky - quer dizer, você é, às vezes, mas não com uma camisa de força e se arrastando por uma escuridão fedida. XD

O maior medo sempre vai ser o do desconhecido - e nesse teu conto a gente começa e acaba sem entender nada. Freeeaky, eu insisto. Terror psicológico é o que há...

9/04/2006 5:18 PM  

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