27.8.06

Resposta da Aline ao Desafio XIV

Trança Rubra


Acalma-te, rapaz; não há razão para sentires medo. Não de mim, pelo menos. Se hoje vago sozinho por entre estas árvores, não foi por minha livre escolha. Não tenciono tomar-te o cajado ou o cantil; aproxima-te. A brisa insiste, convém sentar perto da chama. A lua é alta no céu, e brilha inteira: em noites como esta o espírito clama por uma história.

Decerto ouviste frase semelhante antes, não? Pois bem, sou um trovador, e é o máximo que ofereço em termos de apresentação. A floresta que nos rodeia tem os ouvidos do demônio, e o nome que fora há muito associado a mim já está suficientemente carregado de danação. Mas esquece estas tolices e deixa-me contar um caso, para tu mesmo então tirares dele o sentido que quiseres. Afirmo perante os olhos de Deus que esta história de fato ocorreu, mas logicamente tens todo o direito de tomá-la por anedota de um insano menestrel.

Aconteceu há muito; o cheiro das folhas apagou a data precisa. Acredito que conheças por nome o senhor destas terras a oeste. É teu amo? Tanto mais claro. Eu seguia para lá, vindo do norte; a senhora daquelas paragens fizera o capricho de ignorar o som de meu alaúde. Vinha acompanhado por um meu companheiro, este sim ladrão dos piores, mas de muito boa conversa. Desviamos nosso caminho em noite de tempestade, e com isso demos aos portões do castelo na outra ponta da floresta em que agora estamos.

Atendeu-nos a própria senhora. Estranhei a ausência do castelão, mas meu colega, muito interessado em suas vergonhosas atividades, pareceu satisfeito. A mulher encontrava-se enlutada dos pés à cabeça, com um vestido já bastante surrado, sem enfeites senão pelo cinto de corda cor-de-sangue que levava à cintura. Aparentava se aproximar da meia-idade, e não demonstrava grande saúde na pele ressequida e na finura dos dedos, mas nos sorrira com a amabilidade de uma moça casadoira. Pediu desculpas pelas condições bastante precárias em que se encontrava: os mouros levaram seu marido anos antes, e o último ataque da peste dizimara-lhe os empregados. Disse-lhe que não me incomodava em auxiliar nas tarefas durante a estadia, e que tampouco se importaria meu companheiro - ainda que naquele momento ele preferisse avaliar a qualidade dos metais da casa.

A luz era escassa, suficiente apenas para vislumbrar os parcos enfeites que ainda havia no salão de entrada: Algumas copas de cobre, uma bela espada descansando sobre um baú de madeira bruta, e acima deste um quadro, o único a cobrir as paredes. Nele mal consigo distinguir a figura de uma adorável criança que parece mesmo sorrir. Não devia ter mais de cinco anos, e suas vestes de veludo escuro faziam um elegante contraste com a longa trança ruiva caída por sobre seu ombro. A imagem atiçou minha curiosidade, como se houvesse nela algo de sobrenatural. Indago à senhora sobre a menina do retrato, enquanto meu amigo se ocupava com a firmeza das copas.

"Oh!, era minha pobre filha", a dama respondeu bastante sentida. "Ainda não era moça quando um mal terrível ceifou-lhe a vida. A pobrezinha adorava que lhe penteassem os cabelos, ocupava as amas por manhãs inteiras com isso..." Com uma risadinha triste, ela se afastou - imaginei que as lembranças ainda lhe causassem dor.

Caminhando em direção às escadarias, começamos a discutir as acomodações para a noite. Meu colega fez questão de não incomodar a gentil senhora de forma alguma: ficaria muito bem ali mesmo no salão. Eu sabia que era por conta de sua necessidade em averiguar as possibilidades de riqueza dentro do baú de madeira, mas a ingênua mulher pareceu satisfeita com a solução. Quanto a mim, passaria a noite na alcova que um dia pertencera à menina da pintura.

Dormi bem e profundamente o restante daquela madrugada. Pela manhã, no entanto, fui acordado pelos gritos histéricos da senhoria.

Desci as escadas como uma lufada de vento, até o salão principal. Chegando lá, deparei-me com uma cena grotesca: onde havia deitado meu desafortunado amigo na noite anterior, encontramos apenas seu corpo, dilacerado de forma extremamente violenta. O coitado tinha a barriga rasgada de cima a baixo, e suas tripas só não derramavam porque aparentemente haviam sido devoradas. Tinha os olhos arregalados e uma expressão irreproduzível no rosto; por certo continuara vivo ao longo da tormenta.

A dama estava caída logo à entrada do salão, desmaiada. Levei-a para fora e fiz com que acordasse. Estava transtornada, pálida, em absoluto estado de choque, e repetia continuamente algo sobre lobos e o portão que aparentemente esquecera aberto durante a noite, e que sono profundo o dela para não acordar com os gritos do pobre homem. De alguma forma consegui que agíssemos como gente, ainda que a idéia dos lobos não me parecesse plausível. Com sangue frio, enterrei a carcaça de meu infeliz companheiro, o qual certamente não merecera fim tão triste, mesmo com todos os seus pecados, que Deus o tenha.

Mas enfim, continuemos. A teoria dos lobos não me agradava, mesmo que eu soubesse que apenas um animal fosse capaz de tal estrago na carne. Na noite seguinte preferi ser mais prudente; recostei meu alaúde no pé de minha cama, e deixei a adaga de pronto alcance.

A lua estava tão alta quanto esta acima de nós, quando ouvi o som do alaúde sendo arrastado. Meu assassino percebeu a debilidade de seu ataque e jogou-se em minha direção. Não hesitei em sacar a adaga. Afundei-a em carne macia, ouvindo o brado de dor da mulher que me oferecera abrigo. Na escuridão do quarto, pude apenas sentir o corpo dela se afastar com um pulo e ouvir o som de algo suave pousando no chão.

Foi então que ouvi um grito agudo, inumano, que não poderia ter sido causado pela senhora que sofrera a estocada no abdome. Soava mais como um gincho selvagem, bestial. Demoníaco.

Nesse momento, enquanto eu ainda me recuperava do estupor, o Vento Norte brincou com as cortinas da janela, deixando que um lampejo de luz invadisse o recinto: o que vi, meu caro, e que jamais fui capaz de apagar de minha mente, era a coisa mais horrível que um homem jamais poderá ver em toda a sua mísera vida.

Era a menina do quadro, ou o que um dia fora a menina do quadro; agora era um ser horrendo, branco feito vela, o corpo franzino coberto por fraldas de camisa; por sobre a pele da cabeça uma ampla ferida substituía a bela cabeleira. Nem sei como pude reconhecer, naquela aberração, o fantasma da criança adorável pendurada na parede do salão do castelo. A criatura cravava os dentes no ventre da própria mãe, sugando afoita o sangue que dali jorrava. A mulher batia os braços e as pernas a esmo, agonizando em espasmos, até que desfaleceu enquanto o pequeno diabo lhe esgarçava a ferida com as presas.

À frente desta cena infernal, encontrava-se estendido o ítem que ouvira cair: ao golpear a mulher com a adaga, acertara em cheio o fecho que prendia as pontas do cinto de corda. Num gesto rápido, e sem entender bem a razão, puxei para mim o adereço. A menina ainda tentou alcançá-lo com um gesto atrapalhado e bestial, mas eu o sustentava firmemente. Só então notei, com horror, que o material carmesim do cinto era nada menos que cabelo humano! O monstro se encolheu; um raio de lua desgarrado iluminou seu rosto. E ela sorriu para mim, arreganhando suas gengivas banhadas no sangue materno – sorriu, como se fosse uma criaturinha de Deus! Gritei, apanhando o que podia pelo caminho enquanto fugia escadas abaixo, sem jamais soltar a trança rubra.

E agora aqui estou, caro viajante, importunando-te com um conto sobre as obras do demônio. Depois de todo esse tempo, entendi que a senhora do castelo usava os cabelos da garota em torno da cintura como alguma forma de proteção. O monstro não a atacaria enquanto usasse o amuleto; mas como o amor da mãe pelos rebentos é por vezes maior que o amor da mulher por Deus, ela se recusava a deixar a criatura morrer de fome - matara todos os humanos da casa e os oferecera ainda frescos à desgraçada. Como sei disso? Ora! Olha agora o que carrego em minha cintura, forasteiro - isso mesmo, o mesmo artefato maldito! Tive medo de atravessar a floresta e levar a filha do demônio comigo até as bordas de um lugar habitado. Estou preso a este objeto infernal e a esta floresta infeliz, enquanto quiser continuar vivo.

Sei bem que não queres acreditar. Ninguém o quer. A brasa da fogueira já está fraca, e a noite não cessa. Tu hás de preferir seguir tua viagem agora. Mas toma cuidado, que a besta nos ronda. A infeliz associa esta desgraça deste cinto à proximidade de comida - foi criada com a mãe lhe servindo fartas iguarias... sim, melhor que te afastes. Acende teu candeeiro, mantém teus olhos abertos, teus ouvidos bem atentos. Não que tenhas motivo para temer. Não a mim, pelo menos. Talvez a ela que nesse momento se esgueira às nossas costas. Agora, porém, ela sabe caçar sozinha. Boa noite, meu caro - e boa viagem.

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