25.8.06

Resposta da Maria ao Desafio XIII

Tipo de texto: conto
Tema: Jesus Cristo ressucita depois de 2.000 anos, e este fato é televisionado.


Imagem e Semelhança

- És tu, Pedro?

Não preciso –nem quero- abrir meus olhos há tanto fechados para ouvir a presença de alguém em torno do meu corpo. É estranho como, depois de dois mil anos privado de cinco dos meus sentidos, eles parecem tão infinitamente aguçados: posso ouvir uma respiração discreta e tensa, sinto a vibração no ar feita pelo coração que bate cerimonioso, o cheiro impiedosamente leve, quase ausente, o resíduo de sangue e lágrimas distante em meu hálito, vejo a luz branca que se embrenha por minhas pálpebras e faz cerco às minhas retinas.

E sinto frio.

- Pode-se dizer que sou seu mais fiel apóstolo.

Sei que não é Pedro. Não conheço esta voz. Encolho as pernas mais para perto de meu peito e os punhos mais para perto de meus ombros. A superfície sob mim é muito fria e lisa. Os meus olhos, não quero abri-los. Não compreendo. A voz adquire um tom profético.

- Ó, Senhor, filho de Deus, que vieste à Terra e morreste na cruz para salvar os homens de sua desgraça! Nós, cordeiros do Teu rebanho, aguardamos o Teu prometido regresso no escuro eterno de nosso pranto! E agora, irmãos, vede! Vede que aqui está o Senhor vivo! Egresso do mundo dos mortos pela força das nossas orações! Glória a Deus, irmãos! Glória a Deus!

Tanto quanto o silêncio em que despertei, tudo permaneceu na mesma inércia ao fim do insuflo. As palavras em chamas não se seguem de qualquer saudação: cai num vazio sonoro tão assustador que faz meus dedos enregelados se retesarem. Não há tampouco rechaços. Sinto medo.

- Abre os olhos, ó Senhor! Somos todos teus servos!

Eu obedeço. Devagar ergo minhas pálpebras inúteis, tentando me acostumar de novo à claridade. Leva alguns instantes até que eu perceba que tudo é mesmo mais luminoso do que eu estava acostumado. Metais como prata, mas escuros e mais foscos. À toda minha volta, paredes imperceptíveis simulam um horizonte de nuvens pesadas e espessas. O céu, minha vista não pode delas diferir, exceto pelos olhos negros e vítreos, todos iguais, que no alto em círculo se dispõem, não em pares, mas todos igualmente espaçados e inclinados.

À minha frente, uma enorme janela exibe devasso um enorme corpo magro e pálido que parece meu. As mãos e as pernas, muito brancas e estreitas, inertes, coladas ao corpo. O rosto fino, cansado, pressionado contra o chão. Os cabelos castanhos espalhados. Os olhos profundos, assustados, escrutinadores. As escaras espalhadas pelo corpo, das chicotadas que jamais sararam, das perfurações que jamais foram fechadas, dos sulcos que a idade jamais pôde fazer. O grande corpo vai sumindo e dando lugar ao grande rosto, atemorizado, confuso, vencido. A sua imagem tão superior à mim me dá a impressão de Deus, e eu recolho o corpo em sinal de respeito. Ele faz o mesmo.

Não há pessoas aqui. A não ser um único homem, robusto, de braços abertos e olhar serenamente injetado, que anda soberbo sobre a janela. Ele me olha inquisidor e sorri, mas não para mim. Para si. Seu gestual é encadeado. Ele junta as mãos como em oração e desce as escadas. Seus sapatos retumbam ritmados, e a cada passo que ele dá meu corpo se compacta mais e mais. Eu olho para meus joelhos. Vejo os sapatos negros ante meus olhos e o som deixa de existir. Onde estão todos os que ele evoca?
Os olhos do alto não piscam.

Os olhos fracos da enorme janela piscam comigo. Pai? Não, não vou apelar à sua compaixão novamente, seu filho renegado. Mas sinto frio. E medo. O homem fala aos olhos que não piscam. Tenho medo dele também, que estava acima de um Deus e dele desceu por sua vontade.

- Nós O trouxemos de volta, irmãos! Nossas orações trouxeram de volta à Terra o filho de Deus! Curvem-se diante Dele, aleluia!

Ergo os olhos com alguma desconfiança. Os olhos que não piscam tampouco parecem se manifestar. O homem acima de Deus, porém, responde com o corpo às ovações de milhões de gentes que não consigo ver. Meu rosto na grande janela se desfaz, como os reflexos na água se desfazem com o cair da noite. No meu lugar, vai surgindo o homem a quem devo temer, com seu grande abraço incompleto. Súbito, como se possuído por um demônio, ele ergue uma de suas mãos num gesto de espada e abençoa seu rebanho invisível.

A janela escurece. No teto, os olhos que não piscam emitem um zumbir de inseto e se ocultam, enfim. O homem desfaz seu gesto peculiar, repousa as mãos nas costas e caminha lentamente diante de mim, seus sapatos relampejando sob meus ouvidos.
- Seja bem vindo ao nosso templo –o homem torna, com a cordialidade de um Pôncio Pilatos. Posso tratá-lo por “você”?

Tenho medo de como esteja minha voz outrora tão incisiva, depois de tantos anos. Como não lhe respondo, ele toma meu silêncio por afirmativa e continua a me inquirir.

- Sabe que sua volta foi muito aguardada, eu suponho. Acho que você não teria voltado se não o tivéssemos buscado. Estou certo?

Está. Se não estivesse tão aterrado pela humilhação de minhas cordas vocais castigadas pela morte, responder-lhe-ia que sim, oh sim, está. E que, por mais vergonhoso que me seja admiti-lo a mim mesmo, eu tenho o medo dos mortais que sofreram. Decerto o homem não o entenderia, mas qualquer outro mortal que, como eu, tivesse dado sua infância e sua juventude em favor de um ideal estrangeiro a si, com a promessa de ser acolhido e recompensado, de sentar-se a direita de Deus, e por esse mesmo Deus tivesse sido abandonado à morte, oh sim, qualquer mortal como eu se esconderia na terra dos mortos, à sombra de qualquer luz terrena ou divina que lhe viesse novamente adular os cabelos e romper de cravos o peito. Na terra dos mortos, onde me encontrava.

Diante deste pensamento, e sem que eu possa pensar o contrário, meus lábios se esgarçam e a língua em sístole expele as palavras molemente.

- Por quê?

O homem se enche de uma fúria terna e me responde pausado e duro, como um pai que chicoteia o filho para formar seu caráter.

- Há milhões deles lá fora. Suas vidas não valem o que comem. Eles chegam à minha igreja falidos, devastados. Eles me imploram “bispo, dê-me algo em que acreditar”. E eu lhes dou você. Que esperava que eu fizesse? Que lhes deixasse ver que suas vidas continuam a não valer nada, ou menos que nada?

Meus sentidos não podem estar perfeitos. Não pode ser verdade o que ouço, não depois de tudo o que aconteceu.

- “O vingador é lento, mas muito bem intencionado”, me disse certa vez o pastor que me fez bispo. Foi dessa forma que construímos e caiamos a fé dessa gente. Mas chega um momento em que o povo se sente esquecido, e busca outro Robin Hood a quem chamar. O povo é carente e hipotenaz, você sabe. Mas teme até sua própria sombra, e isso torna as coisas muito mais gentis.

Os espinhos em meu coração novamente se apertam. A dor de ser humano, de ser vivo, faz com que eu me lembre do acalanto maternal da morte e a deseje, sacrílego. Essa dor de ser humano demais para Deus e divino demais para os homens; dilacerante e pesada por ter de ligar os muitos anseios dos homens aos muitos poderes de Deus.
Dois homens entram no grande aposento e me removem para um quarto. Acomodam-me numa cama, lavam-me as injúrias, cobrem-me com uma indumentária muito diferente da deles. Pousam-me em uma liteira, na qual sou levado a uma redoma. Algumas horas se passam até que as portas se abrem, e delas irrompa uma multidão precipitada até o vidro da redoma. Choram, gritam, assustam-me. Estão cobrando minha demora, estão louvando minha chegada. Maldito seja, bendito seja, maldito seja. Nos seus olhos, o vazio de almas desnutridas, abraçadas pelos necrófagos dos espíritos, regurgitadas sob forma de fé ofuscante. Irracionais, tentam inutilmente ultrapassar a barreira invisível que lhes separa de mim. São mesmo milhões. À minha esquerda, o homem acima de Deus abre os braços em seu gesto padrão, e novamente abençoa os desgraçados com sua mão de espada. A redoma se ergue, enquanto a multidão é contida a alguma distância segura de mim por grandes homens em vestes negras. Querem-me todos tocar, mas apenas um, o mais distante, realiza aquilo para que veio. Ele aponta para minha cabeça um pequeno artefato de metal.

Um estalo seco ecoa do meio da multidão, que se abaixa aterrorizada e volta seus olhos esperançosos para mim. Meus olhos pesados se embaçam, como antes minha grande mãe se encarregara de fazer. Minha cabeça pende para frente, indolente e envergonhada, e eu busco Deus no homem à minha esquerda. Ele parece discretamente agradecer e abençoar o homem distante. Eu falhei, Pai. Falhei, e por isso me abandonaram sua compaixão e sua ira. Agora eu sei. E falho agora novamente. A última coisa que ouço antes de voltar para o berço escuro e cálido é uma voz embargada que declara que estou vivo.

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