18.6.06

Resposta da Priscila ao Desafio XII

Sob um pedido de ajuda, a donzela reclinou e foi toda ouvidos. Era um mendigo doente, sem uma das pernas e sentado num pano sujo cheio de caixas de remédios em volta. Ela o mirou com ternura e lhe doou cinqüenta centavos, tudo o que tinha guardado no porta-níqueis. Em outra ocasião, o sujeito era um amigo desamparado. Não que ele fosse pobre; pelo contrário, o rapaz era até bem de vida, mas exagerou nas dívidas e agora está em descrédito, temendo a volubilidade do poder fálico que suas riquezas sempre representaram. Com a amiga, conseguiu emprestado um de seus carros. Nada que a fizesse falta.

A donzela destoa do padrão visual periférico, apesar do esforço em fazer parte dele. Roupas caras demais, carro grande demais, e um motorista que de suntuoso só tem o quepe, mas faz bonito ainda assim. Herdeira da sociedade emergente, não nega. Pertence, porém, à segunda geração, o que já a livra do estigma. Gosta de tudo que é bom, assim como seus pais. Recebeu uma educação pomposa, foi estudar na França logo pequena, depois arrumou uns amigos por lá e encabeçou numa aventura ao redor do mundo, sem limites físicos e orçamentários. Voltou há dois anos, e desde então vive a não ser de veleidades. Pra quê mais? Depois ela torna a se preocupar com os estudos, talvez uma formação superior em Harvard, ou Yale... o bom agora é aproveitar a vida aqui mesmo no Brasil, seu Brasil.

Vive numa casa faustosa, de deixar qualquer cidadão médio boquiaberto. O que mais chama atenção em sua Versalhes particular é a riqueza das estantes de livros, pejadas de cima a baixo por uma quantidade de obras ilegíveis em vida. Seu quarto nos remete à memória os magnificentes cômodos da nobreza feudal. Tudo fora criado especialmente para ela, com os melhores materiais, pelos profissionais mais bem conceituados. Jóias também não lhe faltam. Não que seja herança de família, mas nenhuma riqueza é verdadeira sem jóias. Sempre foi assim. Gosta de arte, moda, design, carros e celulares. Ainda está se acostumando aos iPods. Nossa donzela mais parece a ressurreição de Maria Antonieta, reaparecida em um conglomerado urbano subdesenvolvido do século 21, indefectível.

Curioso, no mínimo, é um traço de comportamento da senhorita; o sopro de uma sensação incômoda, mas inevitável. Sempre que passa pela rua em um de seus carros e vê da janela fechada um necessitado, ela se incomoda profundamente. O destaque de sua presença em qualquer lugar atrai olhares marginais, nervosos. Ela, resignada em sua superioridade, ajuda com os trocados do porta-níqueis – que carrega especialmente para eles. Qual seria outra utilidade? Livra-se da culpa e retorna ao seu casulo particular, com a consciência leve.

Quando passa nas ruas a pé e vê a mendicância, ajuda-os com suas moedas. A desigualdade social nos países pobres foi uma matéria muito estudada em seus anos de escola na França. Ela lembra bem das aulas, o professor mostrando as imagens da miséria africana, todo mundo morrendo de pena dos pobrezinhos. Não há marginal que passe por seu caminho e não receba cinqüenta centavos. Sente-se tão correta ao despejar suas moedas, tão bela... e aí à sessão de altruísmo segue outra de compras ilimitadas, nas grifes mais caras. Só uma coisa faz tão bem à donzela quanto ajudar os pobres: é enriquecer seu cofre de riquezas, depois.

Afeita às novidades tecnológicas, nunca perde uma oportunidade de se presentear com laptops, máquinas digitais, câmeras e equipamentos de segurança para a casa; porteiros eletrônicos são sempre muito úteis. Gosta de roupas finas. Em sua viagem à Índia, trouxe quilos de batas, saias, túnicas e vestidos confeccionados na mais pura seda. No entanto, gosta mesmo é da alta costura. Seu corpo é muito difícil pra se enquadrar nas fôrmas prêt-à-porter. Admite duas extravagâncias: carros e sapatos. Não vive sem pelo menos um carro novo por ano – e este hábito é tão antigo que ela se sente a mais infeliz das criaturas quando em dezembro ainda não trocou seu carro mais antigo pelo modelo do ano, ou então por algum lançamento de design arrojado. Sua coleção mantêm-se em 7 ou 8 carros, o mais velho é vendido a preço de banana ou então emprestado aos amigos por algum tempo. Quanto aos sapatos, o controle é menor. Qualquer vitrine a faz parar por horas, e quando isso acontece não tem jeito – lá se vão pelo menos 10 pares da loja. Teve que comprar um armário só pra eles, e ainda dividi-los em categorias – esportivos, sociais, pro trabalho, pras compras... Os perfumes também não passam despercebidos; aprendeu muito sobre eles na França, e agora é especialista. Adora estrear um perfuminho novo.

Encasulada, o que mais a nova Maria Antonieta poderia fazer? Se não oferece brioches, pelo menos dá dinheiro para o pão dos marginais. Cumpre sua missão humanitária do jeito que pode, e aproveita a sorte opulenta que a vida lhe deu. Hipócrita? Mentirosa? Pode ser. Mas enquanto houver ouro e fome num mesmo planeta, haverá o assoberbado dentro das calças.
Obs: Eu errei o pecado. A mensagem que a Mari deixou no meu envelope foi tão sutil que a tonta aqui acabou trocando as bolas. Tirei inveja, mas fiz um texto sobre soberba. Faz parte?

2 Comentários:

Blogger MôNiCa disse:

Sim, faz parte, apesar de vc ter feito um txt sobre o pecado q eu tirei! haha.
Bjs!!!

7/26/2006 12:31 PM  
Blogger Paty disse:

Eu também acho que faz parte, porque não há como não ter um pouco de inveja da vida dessa afortunada... :)

Agora, que soberba pão-dura, hein? Só dava 50 centavos de esmola... Ela devia bater um papinho com o personagem do meu texto! :D

8/07/2006 2:56 AM  

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