16.6.06

Resposta da Aline ao Desafio XII

Abriu a geladeira em busca das batatas. Notou com um suspiro de desgosto as prateleiras quase vazias; precisava fazer compras. Mas não agora. Preocupar-se-ia com isso depois do almoço.

Sim, o almoço. Pegou as duas últimas batatas, grandes e sem manchas, e deixou-as sobre a pia de mármore escuro. Ali já o esperavam a lata de óleo, a cebola, os potinhos de sal e mostarda alemã, além do derradeiro galhinho de salsa. Lavou as batatas cuidadosamente, descascou-as e cortou-as em cubos grandes; encheu uma panela média com água e ali colocou os pedaços do tubérculo, levando tudo ao fogo.

Pôs-se então a descascar e picar a cebola. Devia fazer uma imagem curiosa, o rosto compenetrado e de expressão neutra com lágrimas correndo sobre as bochechas. Não se importava com elas. Já estava habituado, afinal, as cebolas eram um de seus temperos prediletos. Podiam não ter a sofisticação de uma noz-moscada ou mesmo a ousadia da pimenta-do-reino, mas o encanto das cebolas estava exatamente naquela simplicidade em camadas, no despir-se aos olhos daquele que se dispunha a chorar pelo sabor de suas rodelas (ainda que ele a preferisse bem picada e refogada).

Ele era um declarado apreciador de todo o ritual que envolve uma refeição: desde a escolha dos ingredientes até a melhor bebida para acompanhar o alimento. A cozinha era seu ateliê, seu cômodo favorito no casarão, e não por acaso o mais espaçoso. Aquele lugar lhe fazia feliz, muito mais do que a produtividade do escritório ou a sedução do quarto. Ali jamais se sentia sozinho.

Olhou de relance para as batatas se debatendo na água fervente. As mãos, já satisfeitas com a cebola, puxaram para perto o Tupperware de tampa rosa-desbotada, herdado de mamãe. Pressionou com um dedo a carne, sentindo-a afundar confortavelmente: descongelada. O bife já estava cortado, bastaria salgá-lo. Espalhou o óleo na frigideira sem culpa.

Era um homem comum. Chegava solteiro à meia-idade e não se incomodava com isso; sabia preparar seu próprio almoço e lavar suas próprias cuecas, o resto não lhe fazia falta. Não tinha uma vida social muito agitada, mas se dava bem com os colegas de repartição e não desejava mal a nenhum ser humano. Pagava seus impostos, não jogava lixo na rua, preferia produtos nacionais no mercado. Tinha uma vida simples e era feliz com ela. Seu único pecado era o valor que dava àquilo que comia, e que tipo de pecado era esse? Pecado, para ele, era deixar comida no prato, com tantos no mundo morrendo de fome! Então, talvez ele abusasse um pouco com seus caprichos alimentares, mas não estava incomodando ninguém, e os direitos humanos lhe garantiam a busca pela felicidade...

Com um garfo, sentiu que os pedaços de batata já se partiam com relativa facilidade; desligou o fogo e escorreu o restante da água. Enquanto o bife fritava, refogou a cebola (tinha um prazer secreto com aquele malabarismo de panelas) para temperar o tubérculo. Não demorava muito com a carne no fogo bem alto, segredo para obter um bife macio por dentro e levemente tostado por fora. Já sentia a boca salivar enquanto servia o prato, e depois de uma rápida refogada completou a refeição com uma porção generosa de batatas. Um tanto de mostarda por cima, uma folhinha de salsa; pronto.

Levou o prato para a mesa da sala, mesmo morando sozinho. A comida, simples que fosse, merecia uma boa dose de cerimônia. Serviu-se de uma taça de vinho. Comeu sem pressa, saboreando cada pedaço, admirando o deslizar da faca contra as fibras do fillet. Mastigava extasiado num silêncio absoluto, e podia mesmo jurar que sentia cada átomo daquela refeição sendo absorvido por seu corpo e tornando-se parte de si. Comeu feliz, até não mais agüentar; deixou o prato quase limpo, recostou na cadeira e suspirou, acariciando o estômago estufado.

Permitiu-se digerir o almoço por um tempo, mas a lembrança da geladeira vazia o inquietava. Adorava cozinhar, mas detestava fazer compras; infelizmente, não confiava em mais ninguém para a tarefa. Lavou a louça, fazendo uma listinha mental com tudo o que precisava. Percebeu com bom-humor que não fazia questão de muita variedade. Depois de uma última conferida na despensa, deu-se por satisfeito. Voltou para a sala e abriu o jornal sobre o sofá com displicência, deixando o indicador correr livremente por sobre as ofertas. Parou sobre uma aleatória: "Morena 22 beleza natural". Parecia bom. Agora só precisava de salsa e batatas.



Conteúdo do envelope - farelos de biscoito e o seguinte texto:

"Aaah! Não há no mundo sensação melhor do que a satisfação. Sentir-se pleno, cheio e sem espaço por dentro é maravilhoso. Tão espetacular que você não consegue parar, fica sempre querendo mais e mais até não sobrar mais lugar para guardar em você. Até estourar, se possível.
Porque nada substitui o prazer de triturar, processar, deglutir. Sentir o inteiro se esfacelar, se desfazer. Até sobrar só o pozinho.

Pensando bem, não devia sobrar."

4 Comentários:

Blogger MôNiCa disse:

Sério, vou fazer o melhor elogio que alguém pode fazer em um txt sobre a gula: esse texto dá mta, mta fome!!!E eu o estou lendo em plena hora de almoço, não é legal? rs
Bjs!!!

7/26/2006 12:33 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Recomendo um bifão. Com batatas. XD

8/03/2006 4:19 PM  
Blogger Paty disse:

Muito obrigada, maninha Aline. Não só esse texto dá fome, como lembro dele toda vez que estou diante de um belo pedaço de carne. :D

Taí uma resposta que cresce a cada leitura. Da primeira vez, não captei a injoke canibalesca. Depois disso, a resposta ganha a textura de um bom molho. Ou de um bife suculento.

E eu adoro a "ousadia da pimenta-do-reino" e a "simplicidade em camadas" da cebola.

8/07/2006 2:52 AM  
Blogger InFernando disse:

Primeira vez que vejo "tapauér" escrito como é.

1/14/2008 3:46 AM  

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