20.5.06

Resposta da Mônica ao Desafio XI

Entrevista

Inferno. Era a impressão que ele tinha ao entrar naquele salão: estava no inferno. Entretanto, o que mais o assustava é que a luz do sol da manhã invadia em cheio o aposento, entrando somente através de uma janela aberta. Imaginou como seria ao cair da noite, com todas as luzes vermelhas acesas e convidativas. Procurou não pensar nisso. Naquele momento, poderia sentir no ar a presença do pecado, e ele bem sabia que era muito provável que isso deturpasse sua visão das coisas. Afinal, era só um salão, com seu piso de madeira, tapeçarias nas paredes e mesas em volta.
Era fato que não se sentia bem ali. Tinha para si que uma casa como aquela era o tipo de lugar no qual ele jamais pisaria. Não precisava daquilo. Mas agora, mais que nunca, a urgência se fazia imediata. Precisava de um emprego. E (grande ironia do destino!) ele estava parado à porta, observando aquele universo desconhecido com um misto de curiosidade e timidez.
No canto do salão, um homem idoso varria o chão com tamanha abstração da realidade que não tinha percebido sua companhia acanhada. Assobiava uma música qualquer, que o visitante logo identificou como sendo uma antiga canção argentina. Pôs-se a observar o velhinho e, por um momento, sentiu vergonha de si mesmo: ele, um jovem, tinha tantos preconceitos contra aquele lugar...e o velho, bem, ele pouco se importava, varrendo calmamente o salão onde não se sabe o quê aconteceu na noite passada. “Bom, era a profissão mais antiga do mundo”, pensou ironicamente.
Percebendo que o velho não o notaria ali tão cedo, pigarreou forçosamente. O servente saiu de seu mundo interior e disse que estava muito cedo para começar o expediente, mandando-o voltar à noite. “Não vai se arrepender”, disse, com uma pequena risada maliciosa. Mas o riso foi interrompido pelos passos de uma mulher.
Jovem, cabelos muito escuros e pele muito branca, ela era a própria encarnação da beleza. Olhar inquietante. Mas havia nela um certo ar de vulgaridade, dado talvez pelo cigarro que a acompanhava e a forte maquiagem para aquela hora da manhã.
Ela o mediu de alto à baixo, o que fez com que ele se sentisse mais e mais envergonhado. Jamais deveria ter aceitado, mas a necessidade impunha aquela humilhação. A mulher sorriu, um tanto desdenhosa, mas pareceu gostar do que tinha visto. “Boa aparência...foi você quem ligou ontem?”, ela disse. Ele só pôde assentir.
Chegou mais perto. Aquilo o intimidava de forma impressionante, nem ele mesmo conseguia explicar o por que. “Alguma experiência?”, ela pergunta. “Não profissional”, ele diz, e ela tem que fazer um esforço quase sobre-humano para ouví-lo. “Bom, vamos ver o que sabe fazer...”
Joga o cigarro no chão, o que dá mais trabalho para o homem idoso. Aproxima-se do visitante, e ele parece atônito, desviando o olhar imediatamente daquela imensidão azul que se voltava para ele, e que tanto o intimidava. Ela sorri. “É um novato”, afirma. “Creio que não tenho praticado muito ultimamente”, ele responde quase em um sopro. “Ótimo. Vou te ensinar algumas lições, já sou um pouco experiente nisso”. E ele aceita aqueles termos prontamente: a fama que aquela mulher impunha o fazia somente calar e aceitar.
Mais um desvio de olhar e ela diz vivamente: “lição um: olhos nos olhos”. Aquilo era praticamente insuportável para ele. Sustentar aquele olhar era tarefa para os homens mais bravos da face da terra. Mas conseguiria, sim sem dúvida ele conseguiria.
Ela lentamente pega as mãos dele e coloca em torno de sua cintura. “Proximidade é o segredo”. O contato entre suas mãos e as costas nuas daquela mera desconhecida o fez descobrir sensações novas, que ele imediatamente atribuiu ao inferno em que estava. Aquele ambiente de tapetes vermelhos o fez lembrar que aquela mulher era paga para despertar tais sensações. Não se deixaria seduzir: ela era somente uma entre tantas, que tinha calhado de ser sua parceira. Somente isso.
Os pés dela deslizam pelo chão, e ele a acompanha. Estava concentrado naquele olhar, mas podia perceber que outros pares de olhos agora se faziam presentes no salão. Olhos lindamente femininos, que analisavam todos os seus movimentos. “Se fosse mais experiente poderia impressioná-las”, pensou. Impressionar as damas era algo que ele gostava de fazer.
Repentinamente, como que para chamar sua atenção de volta ao que estavam fazendo, ela apoia uma de suas pernas em sua cintura. Ele se assusta e não sabe por que: aquilo era muito comum, não haveria razões para o susto. Instintivamente, dá um passo para trás. Ela sorri: “Você está indo bem”, ela diz. Lentamente, ele gira em volta do salão, sentindo que está evoluindo. O maravilhoso fardo que carregava não pesava nada. E sentiu que estava crescendo aos olhos daquelas que o observavam. Não precisava mais se sentir acuado por aquela mulher que parecia premeditar todos os seus movimentos. Poderia surpreender. Dá um passo para frente. Tinha sintonia com ela, o que era fundamental. Também se sentia capaz de saber o que ela ia fazer, qual o próximo passo a ser dado. Não a via mais somente como mais uma bela mulher sedutora. Era muito mais simples, era uma parceira ideal.
“Olhar nos olhos” não era mais algo que envolvia tamanha dificuldade. Mais dois passos, e ele descobre que a proximidade é realmente o segredo. Ela se vira de costas, apoiando as mãos em sua nuca. E ele estranhamente pensa no quão paradoxal é aquilo. Suas mãos deslizando por aquela pele macia: era a expressão concreta do romantismo. Não havia nada de vulgar naquilo, nada que combinasse com aquele ambiente.
Envolve-a novamente em seus braços, e a habilidade que ela tem o impressiona. Suas pernas são ágeis e flexíveis, e em nenhuma outra parceira ele encontraria tamanha experiência. Ela parecia deslizar pelo salão, e o conduzia de forma brilhante. “Finalmente”, pensou, “a insegurança deu lugar ao tango de verdade”.
Param de repente. Ela sorri para ele, e ele percebe que é um sorriso de boas-vindas. “Está aprovado, mas ainda temos que ensaiar muito e o salão abre às 6. Aliás, ensaio com música dessa vez!”. E, voltando-se para as meninas, diz “apresento-lhes meu mais novo parceiro de tango, senhoras”. E elas o aplaudem. Ele sorri, sem jeito, mas já seguro de si.
Ela aperta sua mão. “Seja bem-vindo, senhor. Precisamos acertar o seu salário. Soube que está precisando muito desse emprego, não é?”. Ele assente. Estava empregado no que mais gostava de fazer, no que suas próprias origens argentinas o tinham ensinado. Uma voz feminina avisa que vai buscar a champagne para a comemoração.
Em um canto da sala, um homem idoso ainda assobiava uma cançoneta argentina, dançando com a sua vassoura.

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