13.5.06

Resposta da Maria ao Desafio X

Abajures

Ouviu o tilintar de chaves próximo e insistente. A fechadura fez um clique metálico, e ela voltou os olhos para a porta que se abria. Ele entrou sem nada dizer. Girou a chave de volta, deixou a pasta de couro marrom no braço da poltrona e virou-se para a mulher no sofá, com um sorriso de canto recalcado. "Acabei de dar prova."

Ela tirou os óculos, espetou-os pela perna no decote da camisola, e marcou a página do livro com um desenho de criança -a casa amarela, o sol sorridente, a árvore de maçãs vermelhas, ele, ela e a Clarinha, o roração cor-de-ros com os dizeres "eu te amo vovo". "Que prazer cruel você tem nisso", ela censurou com um risinho. Embora se reservasse o direito de dissimular o contrário, ela o admirava. Fosse outro e não teria tido o peito aberto ou a disposição de se graduar novamente e se tornar professor àquela altura da vida. Era bem verdade que alguns alunos não gostavam muito dele -e mesmo alguns colegas, mais jovens e experientes. Mas ele já tinha sido suficientemente repreendido vida afora para saber que a vergonha só valia a quem faltava um saudável egoísmo.

Ele descalçou os sapatos, desabotoou a camisa e tateou os bolsos. "Pode deixar, filhinha, que eu vou ser bonzinho." Ele riu e, buscando algo nos bolsos da calça, espezinhou para completar. "E você era muito mais cri-cri do que eu."

Ela pôs o livro de lado e se levantou empertigada, apoiando-se nos joelhos. "Eu sempre fui é muito justa na minha correção." E, firme como que se realimentando da rigidez de professora, pegou a pasta do marido e estendeu-lha, respondendo. "E não põe isso aí na poltrona, que suja tudo."

Ela virou-se sem hesitar e foi para a cozinha. Com um muxoxo e um som de desdém, ele repôs a pasta na poltrona e deixou a sala. No quarto, trocou de roupa e pôs-se a remexer algumas gavetas cuidadosamente. Já um pouco impaciente, foi dar na cozinha, onde ela, ao pé do fogão, tentava riscar um fósforo. "Fiz sopa de ervilha", ela disse ao se aperceber ada presença dele. "Não coloquei lingüiça, mas coloquei uma carninha que está do céu". E sem desviar os olhos apertados da caixinha e do palito, pediu. "Ô filhinho, me acende aqui, acende?"

As mãos dela já não eram mais tão firmes, e ela sempre odiara fósforos. Brem que a filha já lhe tinha dado um daqueles acendedores de apertar, mas ela se recusava discretamente a clicar aquela geringonça, por mania e gosto em depeneder um pouquinho dele. Como era teimosa a sua velha!

Ele tomou a caixinha das mãos da mulher e acendeu o fogão, enquanto ela tirava a cestinha de frutas artificiais do centro da mesa. Ela foi até o armário, pegou talheres e copos, e, vendo o companheiro abrir e fechar as gavetas com jeito de paisagem, sorriu miúdo calmamente enquanto punha a mesa. "Joguei fora."

Havia mais de cinqüenta anos que ela dava fim aos seus cigarros de tempos em tempos. Ultimamente o médico ainda a instigava -e ela se aproveitava, que sabia que eletinha horror a médico. Deixou, então, de se irritar com essa saudável provocação; mesmo porque, havia iguais mais-de-cinqüenta-anos que ele lhe prometia parar de fumar. Compraria mais no dia seguinte.

Tomaram a sopa com alguma conversa. A empregada comprou batatas, o escândalo do presidente da câmara, o filho ligou de Lisboa. Perguntara pelo pai, e lamentara não encontrá-lo em casa . Ela recolheu as tigelas, e um longo silêncio então se instalou: seus pensamentos, porém, convergiram e divergiram intimamente. Ela lembrava dos filhos ainda pequenos, de ninar o menino com música alemã, do marido assistindo fórmula 1 com a menina, dos sobrinhos passarem a noite em sua casa, dos aniversários, namorados e notas baixas. Ele pensava na sogra, nos cunhados, nos irmãos, na mãe, no pai nos avós -e que estranho era, agora reparava, pensar que ele, avô, já fora neto e muito neto.

E ali estavam eles: ela à pia, ele à mesa, a vida pairando sobre os móveis e bibelôs. Bom-dias e boa-tardes, por mais de dois terços de suas vidas eles os deram juntos. Quiseram, fizeram, perderam; receberam, despediram. E ali continuavam eles. No quarto, deitados lado a lado, discretamente contemplaram um ao outro. E como há muito não faziam, se lembraram do que fez os últimos cinqüenta anos terem sido como foram. Ela, nos caminhos traçados no rosto forte e nas mãos delicadas do marido. Ele, na vaga das ancas dela que, dum jeito ou de outro, tinham sido sempre a origem de sua vida. E como num espelho mental, tiveram um medo-saudade ao chocarem seus olhares contemplativos.

Naquela noite, nenhum dos dois desligou seu abajur.

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