1.5.06

Resposta da Priscila ao Desafio X

Percorria a biblioteca com as mãos cruzadas nas costas. Quem não o conhecesse, diria que era mais um daqueles funcionários públicos cativos, velhos de guerra e burocratas por opção. Nada disso. Se o curioso conseguisse enxergar além dos preconceitos, veria, por trás do bigode branco e ar austero, um vovozinho batuta. Assim ele era conhecido por todos que já compartilharam sua mesa no bar da esquina. Assim era o suficiente, naquele momento da vida.

Gostava de caminhar na mesma biblioteca diariamente, a despeito dos filhos, que julgavam mais saudável um passeio no parque, ou uma hidroginástica. “Pra controlar a hipertensão”, diziam, sem surtir efeito. O vovô mentia: àquela altura, bastava-lhe fazer o que desse na telha, sem se preocupar com os efeitos colaterais. Fingia andar rumo à pracinha do bairro, mas escapava tão logo a vigilância falhasse. Sentia-se independente, dispensava a ajuda dos filhos, netos e vizinhos, e nunca entrava na ginástica da terceira idade, apesar da moda nacional. Detestava modas.

Já vivera tanto pra se preocupar com detalhes vis... bons tempos aqueles, quando tudo fazia parte de um universo inexplorado. Nada como o apoio dos pais na hora de aprender a andar, prenunciando as dificuldades e vitórias da vida, e depois as desilusões verdadeiras, que machucam tanto a ponto de criar uma armadura de gelo em todas as pessoas. Ele não queria esta armadura, mas já a tinha bastante solidificada. Fechara-se às emoções, aos sorrisos, às brincadeiras, aos gracejos de uma criança... Soubera que aquilo, um dia, já havia colorido sua vida de importância. Mas, como a velhice vem sempre acompanhada de marginalidade, ela só faz devolver a ingratidão em forma de desprezo. A partir de certa idade, nada vale mais que uma moda passageira.

O gelo começa a se formar quando vencemos obstáculos. Primeiro a vitória em casa, renegando a autoridade dos pais; depois a vitória na escola, quando nos juntamos a um grupo de amigos interessantes e conquistamos as menininhas... então, vem a glória de conseguir entrar para a faculdade. Neste ponto, o espaço dominado sai do puro bairrismo, e ganha novos patamares. Conhecemos pessoas diferentes, lugares novos, e queremos um carro pra suprir a rapidez das vontades. Aí, a cidade perde a graça, e começamos a querer dominar o país: gastar todo o dinheiro em viagens, viajar, viajar, viajar... quando o país enche o saco, vem o mundo: ah, nada como ser dono do mundo, rodar a Europa, a América Latina, e depois voltar com as malas cheias de bugigangas e a agenda lotada de amigos. Depois de tudo, o gelo já fica bem grossão. Quem domina o planeta não vê mais graça em quase nada.

Quando as possibilidades de experiências novas cessam, os vovôs em geral se apóiam na literatura. É a única solução de fazer passar pelo escudo um feixe de luz, mínimo que seja. Sob outro ponto de vista, é também uma forma de embarreirar a velhice ríspida, dando lugar à batutice. Para o velhinho, ler lhe bastava. Décadas após dominar o mundo, nada como explorar universos paralelos, resignando-se ao local.

Mesmo assim, há horas em que não dependemos apenas de boa vontade própria. Nós, os velhinhos, excluídos da sociedade e com os neurônios degradados, também cansamos de apelar sempre para o mesmo. Há horas em que não suportamos a leitura, porque os paralelismos nos saturam, e os feixes, de tanto furar, destroem o escudo que não queremos perder. Vamos à biblioteca por pura falta de opção. Mais que isso, vamos pra nos orgulhar da certeza de já termos guardado, pelo menos uma vez na vida, o conhecimento de todos aqueles livros. Chega uma hora em que tudo cansa, então a gente percebe que já viveu demais. Basta de pensamentos e revoluções perdidas. O batuta, se duvidar, virou um sábio mais poderoso que a própria vida. Agora, ele quer o diploma.

5 Comentários:

Blogger Luiz Alberto Machado disse:

Excelente este espaço de vcs, adorei! Vou indicar nas minhas páginas.
Beijabrações
www.luizalbertomachado.com

5/02/2006 6:49 PM  
Blogger Mariana disse:

Que texto emocionante, dona Priscila!! Esse parágrafo final, então, tá apretando a minha garganta!!

Foge totalmente do teu estilo por ser fofo e, de certa maneira, melancólico. Adorei o teu velhinho, realmente muito batuta. E as reflexões acerca da velhice, ilustradas pela experiência do personagem, estão maravilhosas.

Só pra finalizar, simplesmente AMEI a mudança de pessoa do parágrafo final, quando você assume a voz dos velhinhos tão marginalizados e o texto ganha um tom de manifesto.

Parabéns, é perfeito!

5/04/2006 9:07 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Texto da Priscila que não é texto da Priscila. Medonho, isso, num sentido muito bom.

Final arrebatador. E o velhinho é mesmo batuta!

5/05/2006 3:16 PM  
Blogger MôNiCa disse:

E o velho batuta vai entrar para o hall dos nossos personagens mais lendários!!! Vai ser ótimo: imaginem um papao entre o velho batuta, o hedonista, Antonio Dantas e Marcinha? Nossa, acho q esse velhinho vai ter mto o q ensinar para todos eles!
Bjs!

5/06/2006 1:04 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Mas eu duvido que a tapada da Marcinha aprenda alguma coisa. XD

5/18/2006 4:45 PM  

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