28.4.06

Resposta da Aline ao Desafio X

Último


Respirou fundo e enxugou a pele ressecada do rosto, certificando-se de que os doutores ao redor não haviam notado seu deslize emocional. Ninguém percebera - não que ele pudesse ver àquela distância, pelo menos. A sobrinha insistia que fosse ao oftalmologia, tratar daquele embaçado, ou ao menos verificar o grau dos óculos, mas ele era teimoso demais para admitir que não enxergava como antes.

Além disso, a iminente cegueira não o incomodava; podia conviver com ela, da mesma forma que se adaptara à marcha mais pausada. A dor nas juntas gradativamente o afastou do trabalho, mas não era o fim do mundo. Havia muito ainda a se fazer. Às vezes se arrependia por não ter tido filhos. Coisa breve; afinal, os sobrinhos-netos ainda alegravam suas tardes de domingo. Até mesmo a diabetes ele suportava, ao menos enquanto sua irmã mais nova continuasse lhe enviando clandestinamente os bombons bimestrais.

Não, não se incomodava com os caprichos do tempo. Teimoso que fosse, sabia se adaptar àquele novo estilo de vida, mais lento, mais contemplativo. Era incapaz, no entanto, de aceitar a solidão - pois mesmo que houvesse ainda os sobrinhos, os vizinhos, a irmã, sentia-se a cada dia mais só.

Começara há cinco anos, quando perdera a esposa; noite, reflexos diminuídos, o outro motorista bêbado demais. Fora um baque tremendo descobrir-se pela primeira vez vulnerável, não à própria morte mas à daqueles ao seu redor. Em seis meses, envelhecera dez anos.

Naquele velório ainda pôde contar com o abraço dos amigos, alguns praticamente irmãos. Dali por diante seria uma seqüência de tragédias: o infarto, a cirrose, a esclerose, as pílulas para dormir. A cada enterro menos gente de sua geração, a cada despedida a dúvida de quem seria o próximo.

Até que sobraram apenas dois. E agora a metástase dava conta disso.

Virou-se para a porta ao ouvi-la se abrir; a enfermeira gesticulou para que entrasse. Ergueu-se, as pernas um tanto desobedientes. Era o último leito.

Olharam-se. O oxigênio seria deixado de lado durante a visita (aquele era outro teimoso, pensou sem conter um efêmero sorriso). O homem altivo que um dia conhecera deixara há muito aquele corpo franzino que mais parecia prestes a sumir; mas o olhar ainda era o mesmo, desafiador, quente e um tanto desdenhoso. Não trocaram palavras - ambos sabiam.

Puxou um banco para junto do leito e suspirou, sabendo o quão errado era o que faria. Furtivamente, buscou no bolso do paletó a promessa antiga, selada entre cerveja e lágrimas: o cigarro e o isqueiro, inseparáveis como bons amigos. O outro aceitou o presente com a serenidade de um sacerdote. Ainda assim, era difícil saber se o tremor na mão (outrora tão bela, agora magra por demais) era pela debilidade dos músculos ou pela aterrorizante certeza pertinente ao gesto. As agulhas ordenavam que não mexesse o outro braço; o amigo notou logo, e de prontidão levou o isqueiro até ele. Suas mãos também tremiam.

O acamado observou a chama por um instante, os olhos perdidos num ponto qualquer do tempo. Depois, sugou o bastão de nicotina como se aquele fosse o elixir da vida. O outro assistiu a cena até o fim, deixando correr a lágrima insistente apenas ao receber seu agradecimento - o sorriso fraco, e o sussurro seco e raspado como o ranger da porta da solitária.

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Um texto fantástico e, gostaria de destacar, MUITO cinematográfico! Sério, eu consigo visualizar a cena do encontro dos dois amigos e também a dramaticidade da terrível sensação de sobreviver a todos que acometia o personagem principal. Triste, muito triste...

Parabéns pelo segundo nó na garganta que a senhorita me provoca com suas letras! MUITO FODA!!

4/28/2006 8:57 PM  
Blogger MôNiCa disse:

Q cena, q imagens, q sentimento, q impacto! Lindo!
Sim, é um txt depressivo, forte, que dá uma agonia incomum na hora de ler. e, ao mesmo tempo, é tão...lírico, tão...passional. Txts com sentimentos são sempre lindíssimos, e o seu, mocinha linda, está nesse hall. Parabéns!

4/29/2006 2:24 PM  
Blogger Paty disse:

Sabe o que mais gosto nesse texto? A forma como um sujeito absolutamente resignado não conseguiu se resignar com a perda da mulher. Sim, porque essse foi o estopim da sua derrocada.

E depois a reflexão se torna um mudo diálogo de dois sobreviventes. E em breve será apenas um. O gesto cúmplice do cigarro contrabandeado pelo amigo é praticamente uma eutanásia.

Último cigarro, último pedido, último amigo, último suspiro. Sensacional.

5/14/2006 7:53 PM  

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