2.4.06

Resposta da Priscila ao Desafio IX

Quadrinhos
A menina já estava pronta pra vida: determinada, alegre, firme, bonita e quase-adulta. Mas a comparação sempre se fez inevitável. Bastava dizer seu nome que algum engraçadinho logo retrucava: Mônica, da Turma da Mônica? Sim, respondia ela, sem esconder o cansaço no olhar e o amarelo do sorriso. O gracejo, por si só, jamais a havia irritado; a previsibilidade da réplica, contudo, lacerava seu bom humor. Feliz mesmo ela só ficou nas duas primeiras vezes que ouviu a referência, quando ainda era uma criança miudinha. Logo depois cansou. Mesmo assim, aprendera rápido a lidar com a nobreza do nome. Pelo menos não se chamava Ovocléia, nem Maricleuza.

Mônica lia os quadrinhos da xará até o início da adolescência, e sempre pedia pro pai comprar as revistinhas, bem como os almanacões de férias. O ingresso no segundo grau da escola alterou decisivamente seus hábitos literários, e as histórias cada vez mais bobas cederam espaço para novos gêneros de leitura, como deve ser. Enquanto Maquiavel, Agatha Christie e Machado de Assis ocupavam lugares de destaque na cabeceira, restava aos gibis um espacinho ingrato na última gaveta da cômoda, onde ficavam atochados sem qualquer organização. Mônica não suportava isso – não a real, a personagem. Detestava mais ainda quando a Mônica real ria sem vontade da comparação com a Turma – aquilo lhe parecia uma falta de respeito! Precisava combater o descaso com uma atitude radical. Inconformada até os dentes, a personagem decidiu arquitetar seu primeiro plano, algo arrojado, grandioso e, com a devida licença do Cebolinha, infalível: um seqüestro.

A maluquice da idéia, em um primeiro instante, logo se convertera num dos desafios mais complexos do universo ficcional. Como transpor matérias diferentes para uma mesma dimensão? Mônica recorreu à ajuda do Franjinha, que inventou o atirador 2D, uma engenhoca capaz de transformar qualquer objeto real em desenho de revista. Para acionar o invento, no entanto, ela precisaria apontar a máquina para o objeto desejado e atirar um flash. Nada conseguiria reverter o processo.

Enquanto se arquitetava o plano maquiavélico, a Mônica real fazia uma faxina no quarto, distraída... até que encontrou uma revista no chão. Antes de guarda-la na gaveta, parou pra pensar como poderia te-la largado ali, e rapidamente a Mônica personagem, aproveitando a chance, apontou a máquina e deu-lhe um tiro certeiro. Em uma fração de segundo, as duas já dividiam o mesmo lugar.

Os seqüestros da vida real, mesmo que demorassem, poderiam se resolver com a ajuda da polícia. Neste caso, nenhuma intervenção oficial poderia dar certo, tendo em vista que os policiais dos quadrinhos adoram receber uma visita nova: eles quase nunca têm o que fazer.

Sem entender nada do que estava acontecendo, a seqüestrada se sentia diferente. Os corpos e os espaços não tinham profundidade, os cabelos das crianças eram esquisitos, as casas todas iguais, e uma distante demais da outra, o céu mudava de cor a cada segundo, as palavras não saíam em forma de som, mas em balõezinhos...

- Eu sei que você é personagem de quadrinhos, mas eu não. Como é que eu vim parar aqui?
- É, Mônica, bem-vinda ao nosso staff. Eu sei que você sempre lia as minhas revistinhas, mas depois de crescida começou a desdenhar da gente, e isso é muito feio! Agora você vai viver aqui pra sempre, e jamais nos esquecerá.
- Não, eu não quero isso! Tenho minha família, meus amigos, a faculdade, tudo lá fora! Preciso voltar!
- Só se você pedir ajuda ao Franjinha, porque eu só pedi pra ele inventar o transformador de gente em desenho. O contrário não existe...
- Ah, não acredito! O que eu vou fazer da vida aqui?
- Calma, eu pensei nisso! Você pode trabalhar de figurante nos quadrinhos, vai ficar famosa...
- Que futuro é esse, que loucura! Mas, peraí, me diz uma coisa: como aquela revistinha foi parar no chão do meu quarto, hein?
- Não dizem que a fé move montanhas? Então, bastou a força do meu pensamento pra deslocar o gibi em alguns centímetros. Simples!
- Ah sim, ta bom, então vamos ver no que isso vai dar...

E Mônica, aos poucos, adaptara-se à vida neste universo onde as leis são livremente desrespeitadas, e pode-se voltar no tempo e partir para o futuro com a facilidade de um passo. Fez novos amigos, entre eles seus ídolos de infância. Estava chique, vivia na casa do Cascão, do Cebolinha, da Magali e, quando visitava a roça – a uma página de distância – sempre via o Chico Bento. Começava a gostar daquilo.

No mundo real, a situação havia alçado todos ao desespero. Primeiro porque Mônica desaparecera em seu próprio quarto, um caso inédito até para a polícia, e segundo porque as amigas da faculdade não agüentavam mais ter de adiar as reuniões das Trovadoras de Minerva. Um belo dia, sua mãe achou o mesmo gibi no chão, e abriu:

- Mamãe, sou eu! – apareceu uma fala num balão.
- Mônica, minha filhinha, não acredito! Como você foi parar aí?
- Sabe a Mônica personagem, a dentucinha? Então, foi ela que me fez isso, e disse que não posso mais voltar.
- E o que podemos fazer pra te tirar daí?
- Acho que nada. Agora me resta viver aqui, até a eternidade. Sabe que isso tem o seu lado bom? To trabalhando nos quadrinhos, ficando famosa, posso visitar outros lugares e outros tempos sem pagar nada e ainda por cima vou manter meu corpitcho jovem pra sempre. Não quero perder contato com vocês da vida real, mas a gente pode conversar assim, via balões...
- Sua desnaturada!! Tudo bem, se é isso que você quer, isso é o que terá – e fechou a revista, magoada.

Esta loucura virou reportagem principal de quase todas os jornais, passou no programa da Ana Maria, no Jô, no Ratinho e até no Globo Repórter, mas de nada adiantou. Até que, por insistência, suas amigas da faculdade conseguiram dar uma olhada no gibi.

- Ta, a gente já sabe tudo o que aconteceu pra você chegar até aí. Agora, nós temos um plano muito melhor que o da personagem pra te tirar daí – iniciou Laura.
- Gente, mas eu to gostando daqui. Além do mais, já me acostumei a ficar conversando por balões, é ótimo! Eu não canso a minha voz. Aliás, aqui eu posso fazer de tudo sem ficar cansada, nem velha.
- E o que você faz aí de tão legal? – Aline perguntou.
- Bem, eu trabalho como figurante, mas vou a qualquer lugar, a qualquer hora.
- Ta ganhando bem? – interrompeu Lili.
- Não, eu não ganho nada...
- Pô, e ainda me diz que a vida aí é boa? Trabalha de graça, vive fazendo hora extra nas férias, e ainda vem me dizer que gosta? Não zoa! – disse Paty, com firmeza.
- Bom, mas qual é o plano de vocês pra me tirar daqui, afinal?
Mariana se prontificou a responder:
- Você precisa incomodar o pessoal daí. Eu sei que você é quietinha, mas faz de tudo pra encher o saco, o máximo que conseguir! Rapidinho eles dão um jeito de te mandar de volta.
- Tudo bem, gente. Vou tentar.

Todas comemoraram. Escondida, Mônica real preparava a retaliação. Como era amiga da Turma, convidou Cascão para ir à sua casa e, assim que ele abriu a porta, jogou-lhe na cara um balde d’água. O personagem entrou em pânico, mas logo depois percebeu, por incrível que pareça, a belezura que é a limpeza. Em outra ocasião, Mônica escondeu uma pílula de engordar no meio de uma das refeições da Magali: assim, todos os seus exageros se refletiriam na silhueta. Ela foi obrigada a fazer dieta. O caos estava instituído.

Mônica, a personagem, quis tomar considerações. Mas sua xará não estava para conversa. A ilusão inicial havia cedido lugar a uma vontade incontornável de voltar para o seu mundo de verdade. Afinal, nada como viver em três dimensões, com gente de verdade, dificuldades de verdade. Temendo sua determinação, os personagens se uniram, e gritaram por Maurício de Sousa.

- Pai, faça alguma coisa pra tirar essa menina daqui! O Cascão está limpo, a Magali inchou que nem uma trouxa de roupa suja... estamos perdidos!
- Fique tranqüila, minha filha. Estas mudanças não vão chegar às bancas.

Os personagens, Maurício e as Trovadoras de Minerva, com a força de seus pensamentos, chamaram Mônica de volta. Aos pouquinhos, enquanto sua imagem em desenho esvaecia, os contornos reais ressurgiam no quarto, perto do gibi. Todos estavam felizes.

- Ah, como é bom poder respirar ar de verdade, falar com meus pais, meus amigos, cumprimenta-los... fui tão boba de achar aquela prisão uma coisa legal...
- Realmente – responderam as amigas – as companhias da realidade são sublimes!
- Sem dúvidas! Mas essa foi uma loucura tão grande... devo fazer algo para divulga-la, imediatamente! Quem sabe um texto das trovadoras? – completou, sob risada geral.

1 Comentários:

Blogger MôNiCa disse:

Cara, realmente eu sempre quis fazer isso com o Cascão! Como pôde saber?
Um txt mto dez, marcado com o estilo totalmente non sense de sua autora! Já te falei isso: seu estilo é único! Sua imaginação, idem!
Adorei o belo presente! Foi uma honra ser tirada por vc!
Bjs

4/02/2006 9:18 PM  

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