29.4.06

Resposta da Mônica ao Desafio X

O Velho e o Novo

16:03
Lá fora, gritaria, tumulto, xingamentos de toda ordem.
Aqui dentro, silêncio completo.
Era a primeira vez que se viam, e melhor antítese não poderia haver. Os tipos físicos eram completamente diversos, acentuando ainda mais o contraste clichê entre o velho e o novo. Perceberam isso imediatamente e ao mesmo tempo, o que os levou a pensar qual seria o limite verdadeiro entre suas diferenças e semelhanças.
Ambos eram objetos de extrema curiosidade entre si. O mais jovem, repórter promissor, bem-sucedido, 30 anos, tinha o seu furo de reportagem. Estava empenhado naquela história, verdadeiro caso célebre, há 5 anos, mas o interesse vinha de muito antes. E aquele encontro era o clímax de tanto estudo e dedicação. Mas ainda assim, não se sentia confortável. Aquela sala escura, fechada, o sufocava, assim como a todas as perguntas que deveria fazer.
Do outro lado da mesa, um par de olhos inquisitivos o analisava. Sua curiosidade vinha misturada com uma pequena dose de desprezo pela inexperiência do jovem. Dirigia a este um olhar um tanto quanto gentil, mas ainda assim envolto de sua frieza habitual. Aquela insensibilidade persistiu nele durante anos, e foi bastante endurecida pelas condições em que vivia. Mesmo passando por toda a sorte de situações e sentimentos, o seu olhar sempre apresentou a mesma severidade. Tal qualidade não o abandonava, e aquele senhor, no alto de seus 76 anos de idade, não queria mesmo deixar de ser frio. Era o seu traço mais marcante.
Via o jovem que estava à sua frente como mero artífice. Sentia necessidade de se expressar de alguma forma, conversar com alguém, contar histórias, e aquele repórter tinha se mostrado providencial. Sorriu perante a idéia de que aquele cara pensava estar no controle da situação. Enganava-se por completo. Fez menção de dizer algo para mostrar quem realmente detinha o domínio, mas preferiu ficar em silêncio. Estava confortável assim.
O jovem coloca a fita no gravador. Aperta o rec. O circo está armado, o velho pensou. Só precisava começar o espetáculo.
- Está gravando?
- Está.
- Você me perguntou se poderia gravar?
- Não, desculpe. Posso gravar?
- Não. Desculpe. - E sorriu ironicamente. A fascinação aumentou aos olhos do repórter.
- Posso tomar notas então?
- Preferia que prestasse toda a sua atenção em mim.
E o repórter não pode deixar de pensar que aquele senhor era, no fundo de seu ser, um carente por atenção. O que facilitava todo o seu trabalho.
- Se o senhor prefere assim...tudo bem. Mas infelizmente não tenho muito boa memória...
- A memória é o bem mais precioso do ser humano. Não é realmente especial que uma pessoa possa se lembrar de tudo o que fez com a exatidão do momento em que aconteceu? Ainda mais quando se faz grandes coisas?
- Penso que sim. Existiram muitas grandes coisas na sua vida?
- Ah sim. Na hora você não dá muita importância aos fatos, mas quando eles passam percebe-se que todas as lembranças são únicas.
- E quais são as suas mais queridas?
- Ora, sou um velho, tenho muitas...deixa eu ver...minha mãe me dizendo que um dia eu seria importante. Meu pai dizendo para mamãe não me iludir...o olhar de Marta quando a vi pela primeira vez...
O velho pareceu hesitar. O repórter aproveitou-se da situação: essa seria a sua oportunidade para entrar no assunto.
- O que tinha no olhar de Marta? - perguntou, arriscando-se por completo. Talvez o seu entrevistado o tomasse por insensível, o que certamente o colocaria em uma situação de risco. Nunca era bom arriscar diante daquele senhor aparentemente frágil, mas capaz de coisas cruéis.
- Não quero falar sobre ela. Não hoje. - o velho disse com voz pausada, estranhamente calma.
- Tudo bem, mas isso me surpreende.
- Por que?
- Por que creio que ela é o motivo de eu estar aqui.
- Se ela é a sua única razão, pode sair daqui agora. Pensei que fosse escrever sobre mim, não sobre ela.
- Tudo bem, não vamos falar de Marta. - e o repórter teria que se conformar por enquanto.
Pausa. Silêncio constrangedor. O velho põe as mãos lentamente sobre a mesa e recomeça.
- Deveria me perguntar se me arrependo.
- Arrepende-se?
- Não. Tudo deveria ser feito. Conhece o lema dos Stuart? Sabe quem foram os Stuart, não é? O ensino de hoje em dia é tão medíocre...
- Claro que sei, dinastia que governou o Reino Unido.
- Não, meu jovem. Governou somente a Inglaterra. Não havia Reino Unido – e sorriu novamente. Conhece o lema?
- Não.
- “Ninguém me fere impunemente”
- E isso é uma verdade que carrega para a vida inteira?
- Verdades não envelhecem. Posso ser um velho, mas minhas convicções têm a sua idade.
- Realmente. Exatamente a minha idade...
Os dois sorriram. Um, o sorriso nervoso, constrangido pela ironia do destino. O outro, um sorriso de deleite, de satisfação. Mais que isso, de missão cumprida. Outra pausa. Dessa vez, o repórter é quem quebra o silêncio.
- Hoje ela teria trinta anos... - mais uma oportunidade. Não poderia perdê-la dessa vez.
- Fala da filha da Marta? Ora, ora, só poderia ser como a mãe...
E o repórter se espanta. Os velhos sempre crêem na hereditariedade, pensou. E não por questões genéticas, mas sim deterministas. Quanta ignorância...
- Mas o senhor não acha que nem ao menos deu a ela a oportunidade de provar o contrário?
- Não...ah, essas coisas são hereditárias... - e o repórter sorriu, satisfeito com o seu poder de observação.
- E quais características hereditárias o senhor teria herdado de seus pais?
- Talvez a frieza...a crueza com que encaro tudo o que aconteceu na minha vida. Mas, se quer mesmo saber, não acho que eles tinham vocação para assassinatos, se era essa a sua pergunta...
Pausa. O repórter desfaz seu sorriso e toma um ar de seriedade. Pergunta errada. Não sabia o que responder. A pergunta tinha a intenção que pretendia, mas não a resposta. Esta veio em um tom que demonstrava nítida irritação de seu entrevistado. E o jovem pôs-se a pensar em como aquele corpo à sua frente era tão frágil...Como poderia assustar tanta gente? Como poderia assustá-lo?
A voz baixa e pausada de seu interlocutor o tirou de suas breves reflexões.
- Quer falar da Marta? Pois bem, vamos falar dela. Tudo o que tenho a dizer sobre isso é que a matei, não me arrependo, e já está muito tarde para o remorso. Fiz justiça: ela me enganou. Ver a barriga crescendo, o fruto daquela traição se tornando cada dia maior me fez tomar essa atitude extrema.
- Nenhuma vez se perguntou se essa filha poderia ser sua?
- Eu sei que não era.
- E como pode saber?
O velho soltou uma gargalhada sonora.
- Te ensinaram na escola como são formados os bebês? Pois então...quando um homem precisa morar longe de sua esposa durante um ano, dois meses e 5 dias, e ela concebe um filho, e aparece na sua frente grávida de 7 meses, isso é fisicamente impossível, não acha?
Pausa. Aquele jogo perigoso estava se invertendo, e o repórter sabia disso. O velho sorria, feliz com isso. Ele tinha preparado tudo para submeter aquele jovem, fazendo-o pensar que conseguiria o que queria. Não, não, não às custas dele. A intenção agora era ser cruel. Era ser ele mesmo.
- Matei. E não é porque estou envelhecendo nesse lugar que vou me arrepender. Muitas vezes pensei que iria morrer aqui, mas agora só falta 1 ano para eu sair. Eu sobrevivi ao inferno. Iria me arrepender justo agora?
Aquilo estava chocando gradualmente o jovem jornalista. O amor traído e a vida tinham um gosto amargo para aquele senhor. Se cruzasse com ele na rua jamais diria que naquele corpo reside tanta frieza. Aquilo o enojava, talvez pelo fato de nunca ter sentido nada parecido. Aquele homem velho era muito pior que o mito que os jornais publicaram há três décadas atrás. Sentia-se mal.
17:00.
- Satisfeito por eu ter falado?
O repórter não responde.
- Voltará amanhã?
Silêncio.
A luz que vinha de fora da sala entra pela porta recém aberta pelo guarda. O jovem sai em silêncio. A porta se fecha, e a escuridão volta ao lugar. De sua cadeira, o velho sorri levemente.

1 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Er.... minha espinha tá congelada, Moniqueta. Tô com medo desse velho, do ambiente, da história, do crime q ele cometeu... Enfim, teu texto cria uma tensão tremenda!! E fantástica!

Incrível o contraste entre o velho e o novo nessa história. A diferença não está apenas no tempo de vida, mas no mundo cão vivido pelo senhor e na trajetória promissora do jornalista. E algo me diz q, apesar disso, os dois têm tudo pra desenvolver uma admiração mútua, pra se tornarem amigos. De forma estranha e distorcida, mas têm.

Vc podia escrever uma continuação.

Texto fantástico, parabéns!

5/04/2006 8:52 PM  

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