29.4.06

Resposta da Liliane ao Desafio X

Barqueiro


Acomode-se, minha filha. E me perdoe se eu não a ajudo a embarcar, mas já estou muito mais gasto que a madeira desse bote, seria perda de tempo. É bom sermos breves, considerando a tempestade que os ventos anunciam e a noite insiste em cair cada vez mais cedo. Males do outono. Mas, se tivermos sorte - e creio que teremos -, poderei lhe mostrar algo. Entenda como um presente de despedida de um velho amigo. Mais velho que amigo, decerto, mas a intenção é das melhores.

Eu me pergunto aonde você vai. O mais importante, aonde você quer ir, eu creio já saber. Não precisa me olhar desse jeito, criança, eu ainda não enlouqueci. Simplesmente já vivi o bastante. Eu levo todo tipo de gente por essas águas há tempo demais, e acredite, vocês não são tão diferentes assim. Mesmo com essa névoa opaca me tomando as vistas, reconheço nos meus passageiros de hoje perfis que via quando ainda era moço; as pessoas mudam, as histórias se repetem. E, viajando sozinha, levando consigo apenas esse olhar melancólico, posso apostar que foge.

Por favor, não se espante - ainda que isso só confirme minhas hipóteses. Não entende do que falo? Pois eu me explico, minha filha. Mas, por favor, atente para o cenário, primeiro. Vê como já alcançamos o ponto alto do pôr-do-sol? Sequer havia percebido, não é mesmo? É o clímax, quando eu ainda mantenho o suspense por alguns instantes, antes de finalmente esclarecer minhas idéias. Desculpe, manias de um contador de histórias caduco e sem público.

Menos tensa? Ótimo. Deixe-me retomar, então, minha linha de raciocínio. Quando digo que você foge, meu bem, me refiro ao tempo, à passagem dele. Vamos, não me olhe assim; no fundo, você sabe que eu estou certo. Culpe a falta de passageiros, acabo pensando demais.

Enfim. Eu vi a cidade no seu auge, quando as ruas ainda estavam tomadas por gente nova e cheia de vida - vez ou outra me custa a acreditar que fui um deles. Mas tudo se gasta, criança: esse barco, as pessoas, nossa ilha, eu. E você. É aí que reside o seu medo, não é? Causa-lhe agonia ver as praças vazias, a tinta gasta das construções, o nada-de-novo que toma os dias. Deixamos - e agora falo da gente do meu tempo - que nosso pequeno paraíso envelhecesse, e esse é um retrato doloroso demais para alguém com toda a sua energia. Talvez eu deva pedir desculpas por todos nós. Não é educado deixar assim exposta uma versão ampliada de algo capaz de estraçalhar seus sonhos de juventude eterna.

Mas agora vem o presente que mencionei! Repare: o sol já se foi, quase não há mais luz. E você sequer notou, não é? Acontece assim. A fuga de nada adianta; no muito, trará cores novas para sua tela. Mas é tudo tão gradual - tão natural - que você não nota. A praia muda, as pessoas mudam, mas, no fim das contas, o vento de outono e o pôr-do-sol são sempre os mesmos.

E vamos, minha filha. Enxugue esse rosto e me passe cá a lanterna. Já é quase noite.

2 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Nossa, uma metáfora maravilhosa!!! Não apenas para a velhice, mas para a vida e a velocidade com que ela passa. Sensacional, mesmo!

Valeu cada uma das 6 versões e todas elas juntas. Parabéns, esse texto é irretocável!

5/04/2006 7:59 PM  
Blogger Aline Brandão disse:

Eu deveria reler o texto todo antes de comentar, mas sabe quando o olho bate em algo e você tem que falar alguma coisa?

Adoro o final, o último parágrafo. É um fim que não é bem fim, a respiração fica suspensa quando se termina de ler o "já é quase noite" - e o que poderia ser uma crítica em outra situação aqui funciona muito bem, porque no fundo no fundo não se está falando em um final no texto, certo? Vejo mais como um novo começo (ainda que possivelmente torto) pra mocinha melancólica. E pro velhinho, apenas mais uma viagem, o ir e voltar que ele já conhece de cor.

Ou sei lá, eu tô viajando. Mas adoro o final.

5/18/2006 4:51 PM  

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