2.5.06

Resposta da Patrícia ao Desafio X

Resposta A

Sentiu os raios cálidos do sol entrando pela janela e aquecendo seu corpo. Mesmo de olhos fechados podia vê-los iluminando as paredes brancas. Seria um dia bonito, com certeza. Na cama, sua mente preguiçosamente acordava. E devaneava. Num estado ainda sonolento, sabe-se lá porque pegou-se a pensar na vida.

Na verdade, sabia o porquê. Hoje completava respeitáveis 90 anos. Era um ancião. Cabelos brancos e as rugas em profusão tornavam impossível negar este fato. Como sói acontecer nessas ocasiões, fez um breve balanço do que tinha vivido até então.

Infância feliz, passada em fazenda. Foi bicho-do-mato, colhendo fruta no pé e andando a cavalo. Aprendeu a tocar violão e a contar causos. Tinha uma boa conversa e isso atraía as moças que apareciam nos saraus da família.

Adolescência, namoro, casamento, família. Era do tipo que acreditava no laço indissolúvel da união diante de Deus. O divorcio não era uma opção, mas isso nem chegou a ser um problema. A namorada de infância revelou-se uma esposa perfeita e mãe exemplar. Criou cinco filhos, três homens e duas mulheres com sacrifício e trabalho duro. Mas tinha orgulho deles.

Todos já casados, com netos. Ah, os netos! Não é que os clichês relativos a ser avô eram mesmo verdade? Mais do que “ser pai duas vezes”, ser avô significou o reencontro com a capacidade de amar incondicionalmente. Vê-los tornando-se adultos sem a preocupação formal de educá-los (apenas de “estragá-los”) o fazia se sentir rejuvenescido.

Aliás, adorava o contato com gente jovem. Enchia a casa com os amigos dos netos, que o ensinavam a usar o computador e a Internet e, em troca, ouviam, divertidos, suas histórias da seca de 66, da época do Getúlio, das Guerras Mundiais.

Era mesmo um velhinho serelepe, quase como aquele da propaganda do cartão de crédito, pois não se enrolava no caixa do banco, sabia programar o videocassete, há tempos brincava com câmeras digitais e andava pensando seriamente em comprar um IPod para ouvir seus sambas antigos e uma ou outra ópera.

É, realmente não tinha do que reclamar. A vida havia sido generosa consigo. Engenheiro bem-sucedido, deixou sua marca em vários prédios pelo país. Aposentou-se com um salário digno e pôde curtir a velhice sem se deixar ficar parado.

Lia, escrevia, era um amante das artes, das ciências e da filosofia. Andava com seu caderninho para anotar idéias e pensamentos e freqüentava cursos de criação literária. A família apoiava o hobby, ele era uma presença requisitada nos jantares e reuniões em datas festivas.

Não imaginava que fosse chegar assim aos 90, com a mente cada vez mais ativa. A idade está mesmo na cabeça, no fim das contas.

Pena que o seu corpo, inerte nesta cama de hospital, não concorde.

Resposta B

“A eternidade é uma merda”. Entreouvi essa frase na conversa de um grupo animado de jovens e não pude deixar de concordar. Palavras vulgares, porém corretas. Quem crê nas supostas vantagens de viver para sempre recai num logro. Malfadado logro.

Incorri neste equívoco e agora sinto asco. Porque vejo tudo definhar, os mesmos erros se repetirem ao longo dos séculos. A humanidade consiste em um irritante ciclo eterno. Quem escreveu “A história se repete como farsa” tinha toda a razão.

Seres humanos têm prazo de validade, e isso é uma das coisas mais sábias da natureza, ou seja lá por qual nome você chame. Nascer, crescer, envelhecer, morrer. Eis aí a graça da coisa. Pois a idéia de ver tudo e todos perecerem enquanto permaneço nesta casca de 25 anos só é divertida pelos dois primeiros séculos.

De resto, não há olhar antropológico capaz de lidar com tantas mudanças tecnológicas, e nas maneiras de pensar. Além do mais, existe uma magia em envelhecer, é como ir deixando a vida lentamente. Saindo à francesa. Enquanto eu me sinto parado em um grande engarrafamento, para usar uma metáfora destes tempos.

Quando se é jovem, a idéia de envelhecer junto a alguém soa como sinônimo de decrepitude compartilhada. Contudo, as vantagens de se ficar jovem para sempre apresentam-se no mínimo questionáveis, especialmente quando o benefício não é estendido a todos os seus parentes, amigos e namoradas.

Todavia, envelhecer junto com seu mundo possui o sentido filosófico de viver o seu tempo e não ultrapassá-lo. Pois é isso, todos têm o seu tempo e tentar prolongá-lo, seja lá por quais meios, é sucumbir à tentação de violar a mais antiga das leis.

Pois tornei-me uma mente decrépita e ranzinza. Eleve a ranhetice de um velho normal a alguns séculos e verá o resultado. Você deve estar pensando se não há outros como eu. São parcos e até onde sei, nenhum do meu tempo. Os que encontrei não sabiam entabular uma conversa minimamente estimulante por mais de 15 minutos. Patéticos.

Ah, como eu queria ver cabelos brancos encobrindo meus olhos e rugas vincando minha face! Saber que há um fim em minha existência, dando a ela um sentido. Decerto a imortalidade é vã. Percebo a sabedoria dos mais velhos, como se todo o conhecimento necessário a uma vida humana pudesse mesmo ser resumido a uns 80, 90 anos. Está de bom tamanho. O cérebro não armazena mais que isso de forma decente – causa provável das minhas enxaquecas constantes.

Você pode pensar: ah, reclamão dos infernos. Vai procurar algo para ler! Já o fiz. Li os clássicos, a fonte. E depois de ter contato com Shakespeare, Dostoiévski, Camus, Goethe, Machado, tudo o mais se assemelha a reles pastiches, toscos simulacros. Ultimamente ando me entretendo um pouco com o cinema. A força das palavras somadas à imagem gera um resultado capaz de me evitar bocejos.

Sinto sua inveja. E ela é recíproca. Poderemos trocar de lugar esta noite.Eis proposta irrecusável, não acha? Que lhe parece? Está rindo, incréu? Pois eu tenho os meios, só preciso de um sócio para esta empreitada. Quem quer viver para sempre, apesar de toda esta ladainha recém-proferida por este ancião lupino em pele de um jovem carneiro?

Ah, contigo não será assim? Veremos. Algumas palavras, um gole desta beberagem e está feito. Divirta-se com a eternidade, meu caro. A mim agora cabe fenecer em paz. Tudo ganha novas cores quando a existência é finita. E enquanto houver tolos a desacreditarem de palavras como as minhas, haverá imortais ingratos ansiando por definhar lentamente como sói acontecer aos espécimes humanos.

2 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Caralho, Paty... Eu tô com um misto de sensações aqui.

1. quero te dar porrada. COMO ASSIM você transforma aquele velhinho simpaticíssimo e fofo em um quase vegetal?? Não consigo aceitar! Porém, como texto, ficou excelente, justamente por ter fugido do clichê provocando esse ponto de virada brusco que mudou toda a história.

2. Vc me fez cavucar meus arquivos e percebi um Dorian Gray às avessas no teu segundo texto. Alguém que teve a chance de permanecer jovem por fora, apedar da idade avançada. Porém, diferentemente do célebre personagem de Wilde, o teu tinha consciência do quão chato isso pode ser. E o caso dele era mais complexo, posto que era imortal (coisa que Dorian Gray não era)...

Enfim, acho que é isso. Ambos os trabalhos estão maravilhosos!

5/04/2006 9:29 PM  
Anonymous Anônimo disse:

Cheguei a conclusão de que a velhice é um estado de espírito ambíguo. É uma boa ter experiência acumulada, mas é uma merda estar enrugada e cheia de cabelos brancos.

5/07/2006 10:13 PM  

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