14.5.06

Resposta da Liliane ao Desafio XI

Lua Vermelha


Não parecia ser um bordel com muitas particularidades. A bem da verdade, caso alguém se desse ao trabalho de fazer uma análise mais precisa dos puteiros locais, notaria logo que conseguiam adotar uma padronização ainda mais precisa que consultórios de ortodontia. Afinal de contas, eram templos erguidos sobre dinheiro e sexo – e, por mais que os valores da bolsa e o Kama Sutra insistam no contrário, o resultado final é sempre o mesmo em ambos os campos.

De qualquer forma, ele detestava dentistas, e prostíbulos também não o entusiasmavam muito. Mas, como numa espécie de círculo vicioso, não conseguia passar muito tempo sem vagar pelas madrugadas, estudando as ruas em busca de uma casa que ainda lhe fosse desconhecida. Provável que houvesse algo em sua alma (ele gostava de chamar de “mácula”) que o arrastasse para buracos que expunham as vísceras da falsa moralidade que imperava sob a luz do sol. E foi assim que, naquela noite exaustivamente normal, aventurou-se a atravessar a porta que parecia mais velha que todo o prédio erguido ao redor dela. Achou graça da mulherzinha nua entalhada no alto do portal, ainda que lhe parecesse um tanto macabra.

E lá estavam elas: as gatas num pretenso cio, miando e ronronando e chiando para atrair a atenção de um macho qualquer; o circo era sempre o mesmo. Tão logo pôde, ele procurou espaço em uma poltrona (jamais se sente em um sofá de bordel) e largou-se ali, esperando que alguma moça mais simpática que uma boneca inflável o arrastasse para o quarto. Quatro paredes divididas em mais tantos aposentos de quatro paredes, todos abrigando um sem-número de mentiras. Ao menos ali se pagava por isso. E ele considerou, já com um copo de uísque barato nas mãos, que seria ótimo se tivesse a opção de pagar por um ou outro engodo, de quando em vez.

Acabou dando de ombros, e logo se viu sendo disputado por um par de seios nus e uma cinta-liga. Não conseguia entender o tipo de atração que exercia sobre meretrizes. Com certeza não parecia rico, mas talvez algo na sua melancolia o fizesse parecer otário o bastante para entregar tudo que tivesse na carteira para uma puta qualquer. Ledo engano. Mas a questão é que agora tinha um mamilo perto demais do seu rosto para conseguir beber em paz – e era disso que precisava, da bebida. Então ele estaria alto o bastante para se deixar levar e se entregar a toda a baboseira ligada a demônios interiores que costumava falar para agradar às moças. Elas achavam poético; ele achava patético.

Desviou os olhos da pedra de gelo quase extinta quando percebeu que a risadaria cessou. Tudo que havia no ar era o odor acre de sexo que vinha dos estofados velhos; nada chegava a seus ouvidos além de um silêncio tenso e pesado, carregado de expectativa. No entanto, ele só teve certeza de que havia algo de muito errado quando as pernas da mulher cinta-liga embolaram-se numa tentativa frustrada de levantar depressa do braço da poltrona.

Então ele experimentou acompanhar o resto dos ocupantes da sala e voltar seu olhar para um dos cantos. E finalmente a viu.

Ele não poderia explicar o que havia de tão especial naquela mulher, mas seu poder ali era tão nítido que chegava a ser palpável. As outras (reduzidas a pobres vira-latas, diante dela) abaixavam a cabeça e murmuravam entre si, enquanto os homens sequer conseguiam devorá-la com os olhos. Não, ela era demais para isso; uma senhora que reduzia todas ali a meras caricaturas. Seus pés descalços mal pareciam tocar o chão enquanto ela caminhava por entre os grupos com uma altivez assombrosa, principalmente considerando sua nudez absoluta. Logo ficou claro que ninguém tinha o direito de escolhê-la – seria uma ofensa. Era ela quem determinava o privilegiado da noite, e ninguém ousaria questionar sua decisão. E ele não esboçou qualquer reação exagerada no que percebeu que era o eleito.

O burburinho cresceu. Algumas moças deixavam exclamações quase eufóricas escaparem por entre os lábios, enquanto uma ou outra parecia sinceramente decepcionada, quase lamentando. No instante seguinte, elas corriam para os outros sujeitos quase em frenesi, arrastando-os para quartos e cantos afastados dali. Um temor estranho pairava em seus rostos corados; elas sabiam de algo.

Ele teve um sobressalto quando ela trançou dedos quentes ao redor dos seus; nunca imaginou que pudesse haver tanto erotismo na simples forma de alguém fechar a mão. E ela o guiou até a tão clássica porta com a lâmpada vermelha, as ancas gingando como as de um gato. Intrigado, ele se deixava levar enquanto tentava encontrar a fonte de todo o encanto daquela criatura. Era bonita, sem dúvida, e a cabeleira ruiva que lhe caía até a cintura estreita lhe conferia um aspecto quase místico. Mas alguma coisa não era normal – algo no brilho quase sobrenatural dos olhos cinzentos, na forma como silvava ao crispar os lábios e analisá-lo. Ela não pertencia àquele lugar, não era uma peça comum e barata como os lençóis gastos que cobriam a cama.

Pouco tempo foi necessário até que ela o despisse por completo, mal o tocando durante o processo. Tudo que ele conseguia fazer era observar os gestos tão lânguidos que não pareciam humanos, mas naturais demais para serem ensaiados. Até que veio o golpe brusco da mão em seu peito, lançando-o contra o colchão. Entre a surpresa e a urgência, ele tentou esboçar alguma palavra, mas ela não permitiu que dissesse qualquer coisa, calando-o com seus próprios lábios, violentos. E ela tinha sabor de especiarias da Índia e de ambrosia, de sangue e frutas do jardim das Hespérides.

Não demorou até que viesse o peso do corpo dela sobre seu estômago – nesse instante que ele teve certeza de que aquilo era tão real quanto um sonho. Ela era como uma serpente, os olhos com pupilas estreitas cintilando na meia-luz propiciada pelo abajur sem graça. O corpo esguio executava uma dança intrincada, cada movimento parecendo o limiar entre vida e morte. Seu perfume era um misto de incenso e maresia e ele, inebriado com aquele rito, entregou-se por completo.

Foi quando começou a ver e, pouco a pouco, tudo se tornou mais claro. Às vezes ela parecia ter a pele ressequida e rota, magra como um esqueleto. Quando ele reunia forças para encará-la novamente, porém, ela parecia mil vezes mais sedutora, ainda que tivesse asas feito as de um morcego e as batesse em espasmos. Mas talvez a imagem mais incrível tenha sido a dos corpos unidos, ele e ela dividindo o mesmo quadril, um brotando do outro sem que se soubesse o que era original. E então ele ouviu histórias de um paraíso perdido, anjos caídos e demônios reais com olhos de cobra. Famintos.

Ele orgulhou-se de sua mácula, sua marca; tinha certeza de que fora escolhido por conta dela. E agradeceu por cada noite frustrada em quartos cheirando a um gozo que não era seu, por cada porre e cada decepção; agradeceu por cada evento que o conduzira até ali. Porque, num milésimo de segundo que se estendeu por séculos, ele viu e compreendeu tudo, a sabedoria ancestral de uma raça esquecida correndo em suas veias, gritando e ecoando em sua mente.

E então veio o silêncio, e ele tornou-se parte do sonho.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

Muito bem escrito esse conto. Estou impressionado com sua evolução. Continue assim

5/21/2006 6:17 PM  

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