4.9.06

Resposta da Mônica ao Desafio XIV

Egaus

“A primeira punhalada perfurou-a de uma forma macia e suave. Eu vi a expressão de dor em seu rosto, e aquilo foi para mim a imagem do perdão, da redenção. Ela gritou tão alto que feriu meus ouvidos, mas ao mesmo tempo eu percebia seu olhar agonizante se apagando lentamente. O sangue começou a escorrer pelo seu corpo, manchando as páginas do livro que ela segurava, em uma tentativa vã de se defender de mim. Aquilo, pelo contrário, me motivava mais e mais. Desferi outros golpes, enquanto ela me arranhava, me machucava, enterrava suas unhas em mim, gritando, até sua voz se perder no silêncio para sempre. Nossos rostos estavam vermelhos da excitação da luta. Ela nunca fora tão bela, em seu vestido de ricos brocados de ouro. Seu corpo lânguido se esvai, escorrega entre os meus braços, até tombar inerte em meio às poças rubras no chão. Mas, quando o corpo cai, o rosto dela dá lugar ao meu próprio rosto. Vejo minha face desfigurada, os olhos apagados. E imediatamente começo a sentir as dores, lancinantes, a dor dos golpes desferidos. A imagem dela me persegue e ri, gargalha ao meu redor, zomba de mim, vitoriosa. Seu olhar queima minha alma, não posso suportar mais. É então que eu acordo, sobressaltado.

Já é a quarta vez que esse pesadelo inconveniente invade meu sono. Levanto-me de meu catre e me sirvo de uma taça de vinho, começando a pensar que voltar aquele lugar era pior do que séculos de guerra. Ela tinha sido providencial, vindo no momento em que eu mais precisava me afastar daqui. Abandonei meu castelo. Não podia suportar sentir o cheiro dela pelos cômodos vazios, a presença dela em cada canto escuro, a sua sombra na luz fugidia das velas. Porque eu sabia que ela estava ali, mais viva do que nunca. De alguma forma, eu sabia. Afinal, no meio de tantos livros e poções, a herege devia conhecer o segredo da imortalidade. Vivia mais tempo na biblioteca do que administrando as terras das quais lhe dei a honra de ser senhora. Eu odeio aquele lugar, e tenho certeza que talvez por isso foi lá onde tudo aconteceu. O pesadelo fatídico volta à minha mente, o sangue dela nas minhas mãos e nos livros. Era neles que ela colocava todos os seus malditos feitiços, porque sim, ela era diabólica, feiticeira dos infernos, que não merecia ser casada com um nobre cristão de tão alta linhagem como eu. E eu não devia sentir culpa por tê-la matado, ela certamente morreria na fogueira lenta e dolorosamente. Dei-lhe uma morte rápida, mais do que aquela infiel merecia.

Travei mil batalhas, matei, fui ferido, quase morri, mas Deus quis que eu vivesse. Quando voltei, encontrei meu feudo arrasado pelas tropas inimigas: as plantações foram queimadas, muitos camponeses morreram, mas minha fortaleza continuou intacta. Porém, havia apenas uma diferença: a biblioteca estava trancada, e não havia chave que a abrisse. Fiquei feliz com isso, me pouparia de muitas lembranças que eu desejava banir da minha vida. Os meus servos também preferiram assim: muitos deles não gostavam sequer de chegar perto desse cômodo, por um medo que nunca conseguiram explicar.

De repente, meus pensamentos são interrompidos por um ruído no andar inferior, que eu identifico prontamente como sendo um ranger de porta. Pergunto-me quem tem a petulância de perturbar seu senhor em alta madrugada. Não há resposta. Acendo uma vela, visto minha pele de urso – as pedras das paredes tornam a noite ainda mais fria – e desço a escada estreita. Ainda do alto posso ver a porta da biblioteca entreaberta. Sinto um cheiro horrível, nauseante. Paro, em dúvida, pensando se entro ou não. Um misto de curiosidade e repulsa me invade, algo que nem eu mesmo consigo definir. Ainda hesitante, empurro lentamente a porta.

Há tempo que não entro aqui, mas me lembro perfeitamente de cada detalhe. O cheiro está cada vez pior. Meu olhar dirige-se ao teto alto, percorrendo as paredes frias e se perdendo nas estantes pesadas. Tudo continua intocado, exatamente como antes, a não ser aquele móvel que eu nunca vira ali, cheio de livros grossos e pesados. Dou o primeiro passo em direção a ele, mas meus pés esbarram em algo caído no chão. Ajoelho-me e aproximo a vela do objeto. E a luz subitamente me faz ver corpos espalhados por toda a parte, putrefatos. Reconheço neles a armadura das tropas invasoras. Vermes saem de suas vísceras e caminham livremente entre uns e outros, e isso me enoja de tal forma que não consigo entender porque insisto em continuar. Caminho entre eles como um sobrevivente em meio ao campo de batalha, até chegar à estante desconhecida. Observo, pelas suas lombadas, que seus títulos são nomes próprios. Pego um volume e abro em uma página qualquer. Instantaneamente, sinto ainda mais frio. Mais uma vez, utilizo-me da vela para ler, e percebo algo realmente estranho: a tinta vermelha se apaga, linha por linha, e a folha volta a ser a superfície totalmente branca, virgem. Avanço algumas páginas e acontece o mesmo. Ouço um grito surdo, e vejo um dos corpos respirar por um segundo, para morrer logo em seguida. Levo tamanho susto que o livro cai das minhas mãos. E aí eu percebo que elas estão sujas de sangue, e que ele goteja até o chão. Olho atônito para o volume, assustado. O medo, antes crescente, toma definitivamente conta de mim. Mais do que nunca sei que ela está ali, me espiando, observando meu temor.

Pego outro volume da estante, e acontece o mesmo. Desesperadamente, abro os livros um por um, tentando entender o que se passa. Vejo-me pisando em poças escarlates, e posso ouvir os suspiros derradeiros daquele exército decrépito. E quando, após jogar o último livro no chão, subitamente encontro o olhar dela se dirigindo a mim, não me surpreendo. O mesmo vestido, a mesma expressão. Minhas mãos tremem e a vela cai, vítima do meu espanto. Grito para ela ir embora, “feiticeira dos infernos!”. Em resposta, ela somente estende para mim um livro em branco, com as páginas tocadas pelo vento. O sonho volta à minha mente pela segunda vez. Atiro o livro contra a parede. Mas, lentamente, sinto minha pele arder, como se agulhas em brasa me picassem incessantemente. Meus sentidos começam a fugir de mim, e vejo meu próprio sangue escorrendo pelos meus poros, se encaminhando obediente ao livro junto à parede. Ainda consigo ver minha história ser escrita, folha por folha, antes que minha alma me deixe por completo, indo habitar essas mesmas páginas. A dor parece triturar meus músculos, e a última coisa que consigo ver é o olhar dela, complacente, se encaminhando em direção à minha biografia. Até que tudo acaba por se perder nas sombras das estantes.”

***

“Nossa, esse livro deve ter mais de meio século! Mas só os tolos acreditam em uma história dessas!”, exclamei fascinado para a bibliotecária, enquanto saía da pequena saleta individual que servia para leitura. “Ele tem muitas consultas?” Ela, surpresa, olha a capa do livro. “Egaus... nunca vi essa obra por aqui. Deixe-me ver se ele está catalogado... você o pegou numa caixa como esta?”, perguntou, apontando uma embalagem de papel neutro. Assenti. Ela abriu a contracapa, procurando as informações de cadastro. “Ué, mas todas as páginas estão em branco!”, disse, surpresa. “Que estranho...”

Meu primeiro pensamento foi voltar correndo à sala em que estava. A tinta vermelha estava lá, manchando a escrivaninha. E meu olhar se volta imediatamente para um volume pesado, que estava na mesma caixa, mas que eu não tinha dado muita atenção. Observo seu título: Branca. Minhas mãos tocam a capa, ainda temerosos. Seria verdade? De súbito, abro o livro. Caligrafia impecável. Folheio suas páginas, mas a tinta ainda se mantém, intacta. E, quando eu começo a perceber que fui realmente um tolo em acreditar nessa história ridícula, levanto os olhos. E então a vejo, caminhando lentamente entre os livros. E eu acreditei.

2 Comentários:

Blogger Aline Brandão disse:

A primeira punhalada perfurou-a de uma forma macia e suave.

Você prende o leitor desde a primeira frase, Moniquinha. Incrível.

E eu sou suspeita pra falar, porque adoro histórias com pinceladas medievais - coisa que a senhorita "antiga" faz com maestria...

9/04/2006 5:28 PM  
Blogger L. disse:

Eu sinto um quê de tristeza por quem vier ler seu texto, Moniquinha, sem terouvido a sua leitura. Porque simplesmente não há como passar pelo primeiro parágrafo sem lembrar das suas pausas, da calma absoluta com a qual vem a primeira frase - e que jeito de começar!

Esse texto é a sua cara. Tem essa classe romântica e as devidas páginas empoeiradas. Ou ensangüentadas, que seja! Você entendeu.

E vale dizer que a imagem final vem com a mesma suavidade e o mesmo impacto do início. Palmas pra ti, linda.

9/12/2006 5:39 PM  

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