10.9.06

Resposta da Mariana ao Desafio XIV

The Darling

Era o apartamento perfeito. Cômodos confortáveis, móveis idem. Decoração em tons predominantemente neutros: muito preto, bastante branco, e alguns poucos toques coloridos na cozinha e no quarto. Ah, o quarto. Sua mãe sempre lhe dissera que a única coisa realmente importante em um quarto era a cama, sendo o resto puro enfeite. Pois este quarto tinha a melhor cama que já vira em toda a sua vida, tão aconchegante e viva que poderia contar tudo o que já acontecera sobre os seus lençóis...

Tinha que comprar o apartamento, não restavam dúvidas. Onde mais acharia tanto espaço e sossego? Apenas num prédio antigo, escondido na ladeira mais distante e arborizada do bairro mais nobre da cidade. Era ali que ficaria, ali nasceria o segundo filho superdotado de uma mãe jovem e promissora. O seu segundo livro.

"Promissora" era a palavra que melhor definia aquela mulher. Escreveu o primeiro volume aos 19 anos, tomando-se, da noite para o dia, "a reinventora da linguagem de ficção urbana pós-moderna". Milhões de exemplares vendidos e toneladas de prêmios literários mais tarde, ela já tinha dinheiro e hype o suficiente para, aos 21, comprar o apartamento de seus sonhos e se preocupar somente com a promessa de superar a sua primeira obra. Estava tranqüila. A inspiração não tardaria a visitá-la, agora que havia encontrado aquele pedaço de tranqüilidade encravado no paraíso dentro do caos.

Acostumou-se rapidamente à dinâmica da nova casa. Tudo parecia funcionar perfeitamente e os móveis de cada cômodo sempre obedeciam ao comando do seu pensamento. Nunca imaginou ser tão fácil administrar um lar. Desse jeito, dizia a lógica, seu segundo livro, que deveria ser a obra-prima, não demoraria a brotar.

Mas a lógica nem sempre anda ao lado da razão. A obra-prima, livro decisivo e maior prova de talento, ainda não havia dito sua primeira palavra. Ela, sempre tão criativa e confiante, comeyava a duvidar de sua capacidade de reinvenção.

Certo dia, acordou com vontade de pedalar pelas ruas das redondezas. Procurou mentalmente a chave do cadeado de sua bicicleta e encontrou-a imediatamente na mesinha de centro. Trancou a porta e estava descendo ao estacionamento quando a viu.

Uma menina, extremamente pálida, com olhos extremamente penetrantes e cabelos extremamente escuros, estava parada diante dela, com sua bicicleta ao lado. Usava um antigo vestido amarelo com babados e seus olhos grandes fitavam a escritora sem piscar.

- Oi! Olha, não sei como você adivinhou, mas essa bicicleta é minha e eu ia usar agora mesmo, s-sabe? - disse a escritora, visivelmente assustada
- Eu trouxe pra te ajudar a fugir. -respondeu a menina, sem mover os olhos e com uma voz fria.
- Como assim "fugir"?? Eu não vou fugir. - a escritora sorriu
- Acredite em mim, moça, você vai querer fugir. Esse apartamento é maldito. Há uns anos. Morava um casal. Eram jovens como você. E felizes. Mas.
- Mas o quê?
- Ele a matou. Prendeu a moça em casa para ela ser só dele. E a matou com vários golpes de cutelo. Depois se suicidou com um tiro na cabeça.
- Jura?? -ela debochou - Que história! Bem que eu precisava de uma idéia pro livro, acho que vou usar essa, excelente mesmo. Vou bater na sua porta sempre que estiver em crise criativa. A propósito, qual é o seu nome?

Tal como havia surgido, a estranha garota desapareceu sem se fazer notar ou deixar vestígios, sobrando apenas a bicicleta exatamente na mesma posição. Com um tremor indiferente na espinha, a escritora pegou a bicicleta e partiu para a rua. Que, cu- riosamente, estava mais escura às dez da manhã do que nunca. Choveria muito, talvez.

Sem ter olhos para a escuridão, ela continuou o seu caminho, sendo envolvida pela mais densa neblina que já vira. Era como pedalar entre as nuvens e ser abraçada por seu toque de algodão-doce. Mas era, ao mesmo tempo, um toque vertiginoso, que enrijecia sua carne e apertava o seu coração, deixando-a perceber o quão sozinha estava naquele lugar. Em toda a sua vida.

Pensou já ser hora de voltar para casa, uma vez que aquela neblina sedutora e sinistra não estava lhe fazendo bem. Bobagem de sua cabeça, certamente, não devia dar atenção a clichês de histórias de terror, tampouco se impressionar com o que a menina havia lhe contado. Ignorou a neblina e continuou pedalando. Pedalou. Pedalou. Pedalou. E pedalou, até concluir que havia andando em círculos e estava perdida.

O mesmo toque vertiginoso ignorado por ela há pouco voltou a pressionar seus nervos, fazendo com que um medo que não conhecia invadisse seu corpo e o extravasasse na forma de um grito. Mais do que um pedido de socorro, ela implorava por acalento, alguém que a ajudasse a voltar para seu querido apartamento e ficasse por lá.

- Precisando de ajuda?

Era o homem mais bonito que já havia visto. Os cabelos escuros caíam teimosamente por sobre a pele branca de um rosto que continha a beleza do mundo das idéias. O corpo bem-constituído e alto era realçado por um longo agasalho preto, do mesmo tom das calças. As mãos de dedos longos seguravam o guidão de uma bicicleta de design retrô e os olhos cor de mel tinham uma expressão tranqüila, porém enigmática. Conforme ele se aproximava, a neblina se afastava. O medo também.

Ela não falou nada, encantada que estava em contemplar a vitória da perfeição daquele homem sobre a sensação de pânico que a abatia. Era como se o toque da neblina voltasse a ser de algodão-doce, regenerado pelos encantos daquele jovem herói munido com a mais sublime das armas.

-Você é a moça que comprou o apartamento, certo? - ela só conseguiu assentir à voz grave e aveludada - Não se preocupe, vou acompanhá-la até em casa. Nunca se pode andar sozinho com essa neblina.

Aquela foi a primeira de muitas visitas do rapaz ao apartamento da jovem escritora. Como era de se esperar, ele entrou para tomar uma xícara de chá e perdeu a hora conversando com ela. Combinaram se ver no dia seguinte, no outro dia seguinte, no dia seguinte do outro dia seguinte... E, em certo ponto, não havia mais ele e nem ela, mas sim "nós dois".

Os dois, rapidamente, passaram a morar juntos no apartamento dos sonhos. A inspiração, chamada pela felicidade, resolveu passar uma temporada com a moça; fazendo com que nascessem as primeiras linhas de um grande sucesso.

- Sobre o que é o livro, amor? - o rapaz surgiu de repente na soleira da porta do escritório, vestindo apenas uma cueca azul.
- Ah - ela exclamou, recompondo-se do susto. - É uma mulher, querido, basicamente a personificação dessa mediocridade e desse consumismo que temos hoje. Ela é indiferente, típico comportamento contemporâ...
- Por que você não escreve sobre nós dois? - ele interrompeu, mirando-a sem piscar.
- Eu? Ah, não, não quero. Não tenho lá muito talento pra escrever histórias de amor, sem contar que eu ganhei sucesso e dinheiro escrevendo ficções urbanas com um quê de filosofia, não sei se mudar seria...
- É claro que seria ótimo. Quem precisa de mais dinheiro e fama quando tem amor? Quando vive junto com a pessoa amada num lugar maravilhoso como esse? Eu ficaria muito feliz contigo se você escrevesse um livro para eternizar a nossa história, sabe?

Sem pestanejar, apenas ouvindo o belo som oriundo daqueles lábios de cetim, ela deletou todo o arquivo que escrevia até então e iniciou outro.

Outro dia, se espantou ao perceber que não saía do apartamento há duas semanas e meia. Duas semanas e meia de amor, é claro, mas sentiu que precisava de um pouco de estímulo externo para continuar com seu novo livro, agora baseado no romance que viva. Porém, da mesma forma como há poucos meses, deu de cara com a mesma menina de vestido amarelo e olhar penetrante, parada no mesmo lugar com a sua bicicleta.

- Você poderia ter me pedido a bicicleta emprestada, não?
- Eu trouxe pra te ajudar a fugir. - respondeu a garota, sem mudar a expressão estranha que tinha no rosto.
- Ah, não! Essa história mais uma vez, não! Eu tô começando a achar que você é que é a alma penada que quer tomar o apartamento de mim! Pois se eu não ia fugir antes, muito menos agora, que estou amando!
- Segunda chance.

A menina desapareceu da mesma forma de antes, sem deixar vestígios e aproveitando um momento de distração da escritora.

Não devia ter tido a idéia de jerico de sair de casa. Estava muito melhor lá, protegida pelo corpo quente e perfeito de seu homem, regozijando-se a cada palavra e a cada uma de suas demonstrações de amor. A vida estava no apartamento e, portanto, voltaria para lá.

Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic. Era o barulho que ouviu quando cruzou a porta de entrada. Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic. Parecia vir da cozinha. Ele provavelmente estava preparando um almoço surpresa. O encantamento cresceu, ao imaginar seus dotes culinários.

Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic. Foi ficando mais alto, à medida que ela cruzava a imensa sala de três ambientes em direção à cozinha. Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic- ti c-pi c-tic. Pic-tic-pic-ti c-pic-tic-pic-tic-pic-tic. Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic, era o único som existente no apartamento, além dos seus passos cuidadosos.

-Querido? Voltei! Você estava certo, eu não devia ter, saído e...Pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic-pic-tic.

Abriu a porta da cozinha e se espantou. No lugar do rapaz, o que viu foi uma mulher loira, de costas, virada para a pia e com a cabeça ligeiramente caída, ao mesmo tempo em que fazia um movimento mecânico com o braço direito. O esquerdo estava escondido, provavelmente apoiado na pia.

Pic-tic- pic-tic- pic-tic-pic-tic-pic-tic. Pic- tic-pic-tic-pic.tic-pic- tic-pic- tic. O ruído era insistente e cada vez mais alto, acompanhando o ritmo do braço direito da mulher. A jovem escritora, tomada pelo mesmo abraço vertiginoso que a neblina lhe havia dado, aproximou-se da loira e virou-lhe pelos ombros...

Seu grito ressoou por todo o apartamento.

O abraço vertiginoso quebrou os seus ossos e explodiu o seu coração com a visão que acabara de ter. A mulher loira, apesar dos belos cabelos de ouro, tinha o rosto gélido e imóvel, colorido apenas pelas grossas lágrimas de sangue que derramava incessantemente pelos olhos vítreos. O braço direito, interrompido em seu movimento mecânico, segurava um cutelo imundo e ensangüentado que, para horror da jovem, estava mutilando o braço esquerdo da mulher loira, já sem quatro dedos. O sangue, tanto das lágrimas quanto do braço, começava a transbordar pela pia, ao que a loira voltava a seu afazer macabro.

Sem sentir as pernas e com a respiração suspensa, a escritora correu por todo o apartamento, gritando e procurando o amparo que a havia socorrido quando a neblina a sufocava e ele surgiu, como de costume, parado à soleira da porta, com o mesmo traje escuro da primeira vez.

- Por que tantos gritos? - ele indagou, com o mesmo olhar calmo e enigmático de sempre.
- Graças a Deus!! - ela o abraçou, começando a chorar.

Ele nada disse. Tampouco retribuiu o abraço.

- Uma mulher, querido! Uma loira... T-tava tava... Ai, meu Deus... Tava na co-zinha... Usando um cutelo pra cortar os próprios dedos... Foi horrível!

O jovem, impassível, disse:

-Ah, aquela vaca... Sempre teve problemas com o cutelo. Eu tive que... ensiná-la a usar corretamente.

O corpo quente do homem tomou-se gelado subitamente. A jovem desvencilhou-se ao ouvir suas palavras, estupefata.

- Como você pôde??
- Ela queria sair do apartamento. O palácio que eu montei para ser o cenário da nossa história. Eu apenas não deixei.

Ela, tomada por uma coragem repentina, correu para a porta de saída do apartamento. Trancada. Porta da cozinha. Trancada. Janelas. Trancadas, tudo trancado! E ele, enlouquecido e impassível, andava calmamente atrás dela, armado com o mesmo cutelo da jovem loira.

Porta da sala, novamente. Tinha que sair, ele estava atrás dela, ela teria o mesmo destino da loira, ela não queria morrer daquela forma, não ali, não no lugar onde foi tão feliz.

Aberta. Milagrosamente aberta, ela tinha que sair. Saiu e viu sua bicicleta, no mesmo lugar em que a menina estranha do vestido amarelo a segurava. Pedalou o mais rápido que sua vida implorava, rumo à ladeira escura e arborizada. Rumo à neblina.

Tropeçou com a bicicleta, que se partiu. Agora precisava correr, contar apenas com a força de suas pernas esgotadas pelo esforço que apenas a expectativa de uma morte brutal nos faz ter. A neblina chegava perto, sufocando-a com seu familiar toque de algodão-doce feito de medo e opressão. Seu coração mais uma vez congelava, seu cérebro explodia e ela queria, mais do que tudo, nunca ter conquistado o sucesso e o dinheiro que a permitiram comprar aquele apartamento.

-EU QUERO VOLTAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRR!!!!

Subitamente, o terror provocado pela carícia da neblina foi substituído por uma sensação de paz inebriante, que ela conhecia muito bem e sabia exatamente o que provocava. Cansada e vencida pela alegria que sempre buscou, deixou-se vencer pelo afago ilusório da felicidade.

Ele, parado à sua frente com o cutelo, só precisou atender ao seu apelo.

No dia seguinte, a menina dos olhos imóveis e do vestido amarelo, voltou à porta do apartamento da jovem escritora. Bateu à porta. Como não encontrasse resposta, abriu-a com um leve girar de maçaneta para encontrar a sala vazia, à exceção de uma mesa na qual jazia um livro.

Com o livro nas mãos, a menina percebeu o que havia acontecido e se entristeceu. Vendo as ilustrações, quase sempre imagens vívidas da jovem escritora e do rapaz, deu um longo suspiro e largou o exemplar na mesa, saindo do apartamento sem piscar.

Na capa do livro preto, via-se apenas um título prateado: "O querido".

1 Comentários:

Blogger L. disse:

Seu texto cheira à era do glamour do terror. Coisas como "O Exorcista", "O Iluminado", "A Profecia" e mais um punhado de clássicos que vieram antes da trasheira zumbi dos anos 80 e das adolescentes burras da década seguinte. E tem sotaque inglês.

Fiquei tensa durante a leitura toda, mulher - principalmente com o toque genial do "pic-tic".

E, quanto às 5 páginas e um tanto, relaxa. Desceu fácil como um cutelo bem manejado.

9/12/2006 4:19 PM  

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