24.11.06

Resposta da Mônica ao Desafio XVI

Guerra e Paz

“...um arrependimento lancinante que lhe devorasse o coração e lhe tirasse o sono, um arrependimento desses perante cujos espantosos sofrimentos uma pessoa pensa em enforcar-se ou atirar-se à água, oh, como se teria, assim, alegrado!”
(Dostoievski, Crime e Castigo)

A guerra já se estendia há anos, e não parecia ter fim. O conflito estava tão enraizado na mente daqueles seres que já fazia parte de sua própria essência, mas não da memória. Nenhum deles se lembrava exatamente como aquilo tudo tinha começado, mas todos eles tinham em sua cultura o ódio, e a necessidade de acabar uns com os outros. E mesmo que esse conflito um dia acabasse inesperadamente, o sangue antes derramado faria com que a vingança e a raiva permanecesse por séculos, dividindo esses dois mundos. O real e o imaginário, o concreto e a fantasia, os homens e os archers.

Sentado à beira do rio, cercado pelas folhagens verdes e vermelhas, Zarmor pensava justamente nisso, e se perguntava porque. Era jovem, e tudo o que sabia desse embate é que nascera pelo simples desprezo que os humanos insistiam em sentir pelos archers. Diziam que não existiam, eram somente fruto da imaginação de crianças incautas e desocupadas. Agora, ele pensava, podiam ver o quanto estavam enganados, podiam sentir isso em sua própria carne. Afinal, ele mesmo já tinha perdido a conta de quantas vidas humanas tivera nas mãos. Olhou para os corpos à sua volta e para o vermelho das folhagens, se recordando da batalha que houvera ali minutos atrás. E tudo por um complexo de inferioridade enrustido em sua raça, por uma necessidade de auto-afirmação obsessiva.

Observou Licz ao seu lado, bebendo aquele suco vermelho que corria pelo rio. Um dia fora amigo dos humanos, assim como era de Licz. Conheceu-o quando era ainda um filhote, e cuspia somente pequenas faíscas. A simpatia foi imediata, mas as queimaduras acidentais também o foram, fazendo-o perceber a necessidade de adestrá-lo. Hoje, Licz era mais um bom servo do que amigo, e Zarmor só percebia isso naquele momento. Um pensamento inevitável passou pela sua mente: e se, um dia, todos os dragões tomassem consciência de seu papel colonizado e se revoltassem contra isso? Afinal, os archers mais primitivos não acreditavam em dragões ou tomavam-nos por criaturas infernais, apesar de serem aliados de seu exército. E Zarmor sabia que os archers não teriam a menor chance de sobreviver.

“Tudo se resume a acreditarmos uns nos outros”, pensou Zarmor, rindo do quanto essa conclusão parecia moral de fábula infantil. Mas seu sorriso apagou-se logo, envergonhado. Os homens estavam pagando o preço, e isso fazia tudo ter sentido. Olhou seu reflexo na água do rio: o rosto ainda estava sujo de sangue humano. Teria mesmo sentido? As mãos e todos os seus três dedos também estavam rubros. E se houvesse a possibilidade de paz?

Ouviu um barulho na mata. Licz subitamente parou de beber água. Estavam próximos a uma aldeia humana e todos os outros guerreiros já tinham ido embora. Zarmor estava sozinho, e Licz estava pronto para protegê-lo. O archer pegou imediatamente seu arco e flecha, utilizando todos os seus sentidos para tentar descobrir o inimigo. Percebeu uma árvore se agitar levemente: alguém estava ali, mas não conseguia fazer a mira. Plenamente alerta, seus olhos estavam atentos ao menor movimento à sua volta. Fez sinal para que Licz ficasse atento também. Mas, depois de alguns minutos e nenhum novo movimento, voltou a concentrar-se em seus questionamentos, deixando Licz a postos.

Odiava os humanos? A primeira resposta que veio à cabeça era sim, mais que tudo. Aprendera isso de seus pais, que aprenderam de seus avós, e assim em diante, por muitas gerações. Deveria ter algum fundamento. Os homens os ignoravam, achavam que eram infantis. Lembrou de seu pai, sua última frase antes de morrer no campo de batalha: “temos que provar nosso valor”. Mas, pensando bem...

Ouviu novamente o som de alguém se movendo entre as folhagens. Sentiu medo de uma emboscada, mas só ouvia passos de uma única pessoa. Não mexeu um músculo, somente utilizando a audição para percebê-la. Subitamente, pegou o arco e lançou uma flecha certeira, ouvindo somente um grito agudo. Licz, surpreso e assustado, lançou uma chama que quase queimou Zarmor por completo. Uma poça de sangue imediatamente se formou por trás das folhagens, mais uma para colorir aquele verde já sem vida. Zarmor, atento a qualquer outro movimento, percebeu que, quem quer que tenha morrido ali, estava realmente sozinho.

Dirigiu-se à poça de sangue recém-formada e, atrás da mata, surpreendeu-se com o que viu. Era apenas uma criança, os olhos abertos e fixos, fitando-o, assustada. O sangue escorria-lhe do ferimento no meio da testa e ia de encontro à terra, perdendo-se na mata. E Zarmor não conseguia tirar os olhos amarelos daquela cena. Sentia como se ninguém mais pudesse acreditar em sua existência, nem ele mesmo. Licz aproximou-se, percebendo a comoção do amigo. O fato de não possuir qualquer sentimento o fez se perguntar porque Zarmor ficara tão estupefato. Para ele, era somente mais um humano.

Ouviu novos passos na floresta e sabia que os homens se aproximavam. Logo descobririam a criança ali, morta. Talvez pudesse ficar e matar todos eles, como fez durante toda a sua vida. Talvez pudesse ficar e ser morto, ele e Licz. Mas não. Aquilo, definitivamente, não valia a pena.

Voltou-se calmamente para seu fiel dragão. “Venha Licz, vamos embora daqui”. Pegou o arco e flecha e voou para os céus. Não havia mais chance de paz. Não mais. Não para ele.

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