24.12.06

Resposta da Mônica ao Desafio XVII

À Meia-Noite
“Fui no cemitério, ério, ério, ério
Era meia-noite, noite, noite, noite”
(cantiga popular)

Aquele cemitério nunca tinha visto tanto movimento. Passos no chão recém-asfaltado quebravam o silêncio da noite, e um observador mais atento poderia captar um vulto ou outro aqui e acolá. Porém, por mais que esse mesmo observador se esforçasse, não veria nada. A visão era algo que lhe era negado naquele momento. Afinal, a privacidade era fundamental para qualquer tomada de decisões. E o pobre ser vivo deveria se contentar com isso. Durante algumas horas, os outros estariam reunidos, escondidos, alheios aos olhos de uma possível, mas improvável audiência. Quem iria passear por aquele lugar em plena madrugada?
A escuridão caía alta e pesada sobre a Terra, e a lua dava às estátuas fúnebres um tom ainda mais sombrio. O mármore, frio, recebia as primeiras gotas de orvalho, e uma brisa fresca soprava levemente, balançando as folhas secas que divagavam de um lado para o outro, indo dos caminhos asfaltados até os lugares mais escondidos por entre os túmulos. Algumas delas subiam até as estátuas e nelas dormiam, e nenhuma outra brisa conseguia tirá-las de lá.
Tal era a imagem a que o observador tinha acesso naquele momento, e certamente ele sairia de lá o mais rápido possível, antes que o medo o consumisse por completo. Mas tudo o que acontecia ali tinha tão especial relevância que era somente desprezado pelo fato de não ser visível. Em um outro mundo, tudo o que ali se passava, tudo o que ali era decidido tinha poder de lei, ditava regras e comportamentos a serem seguidos.
- Senhoras e senhores, queridos companheiros de ofício, eis que dou início a mais uma C.A.A.P. – Convenção Anual das Almas Penadas. Queiram tomar seus jazigos, por favor.
O alvoroço foi lentamente dando lugar a calmaria. Rever velhos companheiros de vida e de morte sempre era motivo de festa para aquelas almas que vagavam pelo mundo sem destino certo. A convenção anual era o único momento em que elas tinham a oportunidade de trocar idéias sobre novas táticas de assombração e técnicas para se tornarem cada vez mais assustadoras. Afinal, o ofício de assombrar era uma arte e somente as almas mais criativas e inspiradas o faziam com maestria.
Após a instauração de um silêncio sepulcral, o mestre de cerimônias tomou seu lugar e apresentou a todos: “Sua Excelência Assombradíssima, o Imperador das Almas Penadas”. Todos imediatamente se curvaram diante do lençol flutuante que atravessou o cemitério e tomou o jazigo principal, onde seu séquito já estava confortavelmente instalado. Fazendo sinal para as palmas que acabavam de irromper entre a multidão, tomou a palavra para o discurso inicial.
- Bom, estamos aqui hoje para dar início a mais uma C.A.A.P.. O objetivo é avaliar os nossos feitos de 2006 e nos confraternizarmos. Afinal, mais um ano de trabalho se passou. Como de praxe, vamos começar nos despedindo e agradecendo aqueles que, durante trezentos anos, se dedicaram a assustar os vivos. As almas que vão se aposentar podem ir para o repouso eterno com a sensação do dever cumprido e com o nosso “muito obrigado”.
Lentamente, as almas idosas se levantaram para partir, acenando para todos os que as aplaudiam. Uma por uma, sumiram na escuridão. O respeito aos idosos era uma marca sempre presente entre as almas, e a Previdência estava sempre com as contas em dia para garantir um bom descanso. O imperador retomou a palavra:
- E também, como não poderia deixar de ser, devemos dar as boas vindas às almas que vieram para o outro mundo esse ano. Muito trabalho os aguarda” - E mais aplausos irromperam dentre a audiência.
Após uma breve pausa para descansar sua voz fraca, continuou:
- Feitos os procedimentos de costume, vamos à avaliação dos resultados. Segundo dados do I.E.O.M. – Instituto de Estatística do Outro Mundo, o número de relatos de pessoas que disseram ter nos visto aumentou 35% desde o ano passado. A procura por centros mediúnicos cresceu na mesma proporção, o que significa um aumento da nossa produtividade”.
Um dos ministros logo pediu a palavra:
- A questão, Excelência, é que morre-se muito mais nos dias de hoje. Os vivos estão envelhecendo, e o mundo das almas penadas está diante de uma explosão demográfica que futuramente pode se tornar incontrolável.
- Já me atentei para esse fato e telefonei hoje mesmo para a Dona Morte, pedindo para diminuir o ritmo de trabalho. Ela prometeu colaborar. Outra medida é evitar assustar quem tem problemas no coração. Pretendo, a partir dessa convenção, baixar um decreto em que fica terminantemente proibido assombrar cardíacos. A maioria concorda?
A questão era, sem dúvida, polêmica. Um outro ministro pediu para falar:
- Mas, excelência, os vivos não tem mais tanto medo de nós. De acordo com as pesquisas, somente 25% da população mundial se assusta conosco, contra 40% em 2005. Isso tirando os que nem sequer acreditam na nossa existência...
- Esse é um mau sinal... - disse o imperador, pensativo... - também, com bala perdida, quem vai ter medo de alma penada? Pensando nisso, creio que todos devem passar por um curso de reciclagem para aprenderem novas caretas e outras formas de assombração. Dizem que há uma técnica com luz fantasmagórica que é excelente, infalível! Que o ministro das tecnologias tome nota disso: devemos investir mais em novas técnicas de produção de sustos! Essa será agora minha prioridade.
Todos aplaudiram. O imperador acenou para a multidão e ela parecia estar em êxtase com tamanho esforço de uma alma já tão idosa. Era inegável que seu carisma atravessava gerações de fantasmas, e seu governo era muito bom para grande parte da população. Parte desse carisma devia-se justamente aos prêmios de reconhecimento que distribuía entre as almas plebéias. E, sendo uma alma de tão grande estima, os ministros não se atreviam a contradizê-la e sua vontade era quase automaticamente lei.
- Bom, levantados os problemas do nosso mundo, devo dizer que me sinto orgulhoso do meu povo, que têm trabalhado com afinco para assombrar os vivos. Para encerrar meu discurso, como em todo ano, o título de Alma Honorária escolhido por essa convenção tem por objetivo homenagear os seres vivos que contribuem para o nosso ofício. Hoje, eu atribuo esse título ao coveiro, que não importunou nossa reunião e fiscalizou muito bem todo o andamento da reforma pela qual esse cemitério passou recentemente. Afinal, depois dela, todas as instalações se tornaram as mais modernas do outro mundo! Uma salva de palmas para o coveiro! E que ele seja muito bem recebido quando vier para o nosso lado!
Os aplausos irromperam estrondosos. Todas as almas tinham muita simpatia pelos coveiros: eles cuidavam para que seus jazigos permanecessem sempre habitáveis. Praticamente não o consideravam um ser vivo: era impossível assustá-los. Já conviviam muito bem com o outro mundo, vivendo no meio das almas antes mesmo de se tornar uma. Aquilo era digno de reconhecimento.
O imperador acenou para a multidão, e acrescentou: - Com isso, dou início à nossa confraternização de final de ano. Que todos festejemos mais um período de muito trabalho e, porque não, muita diversão! Estejam convidados a partilharem do meu banquete!
A partir dali, iniciou-se uma festa que durou toda a madrugada. A um possível observador, toda a visão continuou a ser negada, mas ele podia ouvir os passos das almas dançando, suas risadas e alguns sussurros. Certamente por isso sempre nascem algumas lendas sobre espíritos que vagam pelo cemitério, e, realmente aquele som era muito assustador. Os homens jamais entenderiam aquilo: seu espírito, já predisposto ao medo e à racionalidade, nunca aceitaria qualquer explicação. Ela só viria no dia em que fosse assustado por algumas daquelas almas, ou no dia em que se tornasse uma delas. Mas aquilo certamente não aconteceria naquele momento. Naquela noite, somente festa.

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