21.12.06

Resposta da Priscila ao Desafio XVI

Feijoada do Repete

Custódio nasceu em São Paulo mas sempre quis ficar famoso, nem que fosse só entre meia dúzia de pés rapados em um rancho caipira qualquer. Como sua cidade já estava inchada de homens tão visionários quanto ele – Custódio jamais havia contestado a própria capacidade -, resolveu que não precisava competir com ninguém. Assim, terminou a faculdade de jornalismo e logo partiu pra uma cidade pequena do interior de Minas Gerais.

Logo que chegou, Custódio inflou seu peito de coragem e bateu de porta em porta em todas as redações da cidade. Como havia apenas dois jornais circulando na região, há de se admitir que seu desbravamento não fora tão heróico assim. Recebeu, de cara, duas propostas. A primeira para trabalhar na cobertura de eventos sociais, uma tarefa tão empolgante que, tinha certeza, em algum momento precisaria inventar entrevistas com um filhote de poodle para conseguir completar a coluna. A segunda, e essa o fez brilhar os olhos, era para redigir a nova seção de culinária do jornal, que já se planejava estrear há um bom tempo mas nunca aparecia alguém com vontade de levá-la em frente. Sem pestanejar, Custódio topou a segunda proposta.

Até que foi fácil arranjar o primeiro emprego. Muito provavelmente seus colegas estariam disputando a tapa vagas na Folha de S. Paulo ou em qualquer jornalzão da cidade, mas ele escapou bonito pela tangente. O que diriam? Preferiu guardar segredo, manter-se incomunicável aos amigos, assim jamais descobririam a mina de ouro nem tão distante assim – e então o grande Custódio despontaria sem flechas nem ruídos, naquele mercado fácil.

Com o tempo, todos na cidade perceberiam o enorme talento do rapaz em arrumar polêmicas. Primeiro de tudo: jamais se curvou a uma matéria paga. Segundo: adotou uma estratégia irresistível ao sucesso – a divulgação das receitas de pratos mais pedidos na cidade. Quando prestam um serviço ruim, Custódio não tem papas na língua ao criticar. Por outro lado, quando um prato o agrada – ou vira mania – ele pede licença para entrar na cozinha e copiar a lista de todos os macetes do chef.

A coluna de culinária tornou-se a mais lida daquele lugar. Custódio começou a receber convites, até de restaurantes das cidades vizinhas, para experimentar novidades. E lá se ia o repórter, que nem se lembra da última vez que pagou por um prato de comida.

Um dia, um chef desconhecido aportou naquele lugar. Não se sabe de qual país apareceu, mas fincou os pés no interior de Minas Gerais decidido a crescer por ali. Logo, abriu uma pequena cantina de comida brasileira, cujo carro-chefe era a “Feijoada do Repete”. O nome, de interpretação fácil, devia-se à alta qualidade dos ingredientes, somado a um toque especial que tornava este prato extremamente delicioso. Até mesmo os que não apreciavam feijoada rendiam-se àquela, apenas àquela, e sempre repetiam. Algo impressionante.

Custódio piscou seus famosos olhinhos para a famosa cantina. Aquela receita seria a maior revelação jamais cotada de aparecer em sua coluna, e lhe garantiria ainda mais respeito. Claro, desde cedo o rapaz previa que não se tratava de uma tarefa fácil conseguir aquilo, mas a conquista certamente o transformaria na celebridade que sempre quis ser.

Chegou à porta da cantina e, como um anônimo qualquer, optou pela “Feijoada do Repete”. Aquilo pareceu, à primeira vista, uma feijoada normal. Quando experimentou a primeira garfada, porém, sentiu o paraíso. Estava na cantina do maior chef brasileiro! O gosto levemente agridoce da carne, somado a algum tempero misterioso e inidentificável, tornava qualquer possibilidade de satisfação com o primeiro prato impossível. O repete era a condição mínima para a felicidade de alguém.

Inebriado pela melhor feijoada, ou, melhor dizendo, o prato mais sensacional que já havia degustado até aquela ocasião, Custódio caminhou sem pensar muito até a cozinha do lugar. Quando se dirigiu ao chef, um velhinho de cabelos ralos e ar austero, percebeu uma certa reserva:

- Bom dia, desculpe incomodar, mas será que a gente poderia trocar uma palavrinha rápido?

- Só se for rápido mesmo – responder o chef, com um sotaque meio russo, ou alemão.

- Não sei se o senhor me conhece, mas eu sou Custódio Soares, jornalista do Diário aqui da cidade, e escrevo a coluna de culinária do jornal. Queria parabenizar o senhor pela excelente feijoada e dizer que foi o melhor prato que eu já experimentei até hoje – empolgou-se o repórter – Então, como parte do meu trabalho, eu costumo divulgar as receitas mais pedidas da cidade, e a sua com certeza é uma delas. Será que eu posso acompanhar seu trabalho aí na cozinha?

- Desculpe, menino, mas a minha receita eu quero que seja mantida sob sigilo absoluto, ta certo? Me perdoe – respondeu de forma seca e definitiva o chef , e virou as costas.

Intrigado, Custódio preferiu não contra-argumentar: seria mais inteligente aceitar a recusa. Na madrugada seguinte, disfarçado de ninja e equipado com uma câmera escondida, dirigiu-se à cantina. Assim que o velhinho abriu a porta do estabelecimento para iniciar seu trabalho, o repórter manteve-se na espreita e aproveitou um mínino de distração do chef para entrar no lugar. Pronto. Estava feito. Escondeu-se ao lado da porta do frigorífico e, enquanto arrumava a câmera escondida, tomou um susto. O vovô lá estava, possesso. Enquanto buscava uma desculpa para o flagra, Custódio se surpreendeu com a reação do chef:

- Parabéns pela sua destreza, meu filho.– disse, com uma placidez e um sorriso no rosto completamente distintos do semblante anterior – O segredo da minha receita está logo aí, neste frigorífico. Quer entrar para ver?

- Claro! – exclamou o repórter, ainda acachapado pela receptividade.

Então, o chef abriu a porta e os dois entraram. Antes que Custódio pudesse expressar qualquer forma de surpresa, o velhinho foi-se embora e trancou o jovem dentro daquele lugar gelado, de onde só sairia às 12 horas do mesmo dia.

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