30.11.06

Resposta da Patrícia ao Desafio XVI

Erro Ancestral


Era um rapaz normal, mediano. Mas no seu íntimo sabia ser capaz de algo mais. Nutria um sonho secreto, mas sofria da falta de coragem para realizá-lo, envolvido pelas tarefas cotidianas.

Um dia, no meio do trânsito urbano, ouviu o chamado. Desceu, com a desculpa de evitar o engarrafamento. Rapidamente alcançou a mureta da ponte e, sem tempo para ser detido, lançou-se. Ouviu ainda os gritos "mais um suicida!"

Para surpresa de todos (menos dele) seu corpo caiu, mas quando chegava perto de tocar a água, levantou vôo. Subiu.

Dono dos céus, ria alto. Lembrou-se do Super-Homem, agora sem inveja. Mostrou desdém pelo Batman, que precisava de equipamentos para voar. Ele, nem asas tinha. Flutuava, soberano, por sobre a cidade. Em mangas de camisa, além da calça e sapatos sociais.

Fez piruetas, cambalhotas, parafusos. Nascera para isso, não tinha dúvidas. Todos os seus medos desapareceram e ele se perguntou porque esperou tanto.

Não sentia fome ou frio, alimentava-se do puro prazer de vislumbrar o mundo de cima. Os prédios, as pessoas, as estradas. Viu alguns aviões a seu lado, acenou para passageiros atônitos e desistiu da brincadeira, pensando que poderia causar um infarto em alguém.

Voou para cada vez mais longe, incomodado com o assédio de balões, dirigíveis e helicópteros de emissoras de TV. Não demorou a ficar só, entre o céu e o mar. Sentiu-se paradoxalmente poderoso e pequeno diante da imensidão em dois tons de azul salpicados pelo branco-algodão das nuvens, tanto no céu quanto no reflexo das águas. O silêncio era quebrado apenas pelo barulho ritmado do mar.

Sentiu sono. E fome. E sede. E calor. Pensou em dar um mergulho naquelas águas isoladas ou em procurar uma ilha qualquer, fazendo dela sua utopia exclusiva. Exausto, fez menção de descer. Seu corpo, leve, não tinha lastro que pudesse ajudar no processo. Estranhou. Fez como os heróis da ficção, simplesmente inclinou o corpo para baixo, e nada.

Das nuvens, pensou ter visto um rosto exibindo um sorriso sacana. E entendeu o motivo pelo qual aos homens não era dado o dom de voar. Inconformou-se. Não esperou a vida toda para definhar em pleno ar. Injusto.

Já que era assim, iria aproveitar ao máximo seu momento de glória. Como não podia descer, que fosse ao máximo então.

Voou, subiu. Tocou o céu infinito. Respirar era cada vez mais difícil. Ainda assim, deixou a atmosfera rumo ao espaço. A imagem que ficou gravada em sua retina era a da Terra, azul.

Agora, ele também era céu.

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