19.12.06

Resposta da Maria ao desafio XVI

A um farol vermelho, flutuou o primeiro, e antes que a surpresa pudesse atingir motoristas, transeuntes, passageiros, lojistas, mendigos, consumidores, também eles perderam com o chão e com os demais apoios o liame do peso. Os objetos, digo, as coisas, árvores, animais (exceto os pássaros, baratas, insetos, e demais seres já previamente voadores), e tudo o mais que gente não fosse permaneceu indiferente à novidade involuntária. Bestamente moviam-se, de ínício, os flutuantes-novos, passado o primeiro susto, o estupor inicial que só permitiu às mulheres a óbvia reação do grito, aos homens o furtivo turpilóquio, e vice-versa aqui e acolá. Alguns (obviamente, os que sabiam nadar, suponho) agitaram os braços como se imersos num líquido invisível e seco, outros pateavam o vazio, ainda habituados a andar sobre o chão (sem sabê-lo, mas segundo enuncia Newton, para que andemos aplicamos uma força para trás sobre o solo e ele nos devolve na mesma medida e em sentido inverso, nos empurrando para a frente), como eu dizia, tentavam empurrar o vazio com os pés, como empurravam o chão para irem afrente e atrás.

Não levou muito até que se descobrisse que todo o país houvera sido tomado de assalto pelo mesmo acontecido: as redes de televisão e de rádio noticiaram o fato desde o mais tenro momento -isto é, depois que os jornalistas e radialistas também flutuantes se reuniram a portas fechadas para discutir às pressas a abordagem, o tom, as palavras mais adequados ao comunicado e à cobertura, segundo as humanas regras do jornalismo informativo de não causar pânico ou desinteresse na audiência, como um capítulo de novela que não assusta e mantém o controle remoto inativo até a próxima transmissão. Vale dizer que o que mais vorazmente se arbitrou nestas cimeiras foi o nome por que chamar o ocorrido, que por ser extraordinário precisava ser nomeado de forma rápida e sem eufemismos, não podendo ser evocado ordinariamente como o-evento-que-vem-assolando-nossa-bem-amada-pátria ou coisa que o valha; vale dizer ainda que o nome escolhido pela rede de mídias mais pujante foi A Crise da Gravidade, e que rapidamente as outras redes nanicas abandonaram suas escolhas e adotaram o nome pelo qual ficou conhecido o episódio para sempre.

O primeiro efeito a se sentir além do óbvio foi a forma de locomoção dos cidadãos, que agora que não mais podiam andar como sabiam, encontravam cada qual seu artífice para sair do lugar em que estavam. Havia os que se deitassem no ar de frente ou de bruços e fizessem nadar, houve os que agitassem braços e pernas todos juntos para frente e para trás, os que usavam a cabeça para dar impulsos, os que se seguravam nas parede e móveis e com eles se empurrassem, e mesmo os que se punham de gatinhas, insistindo em se apoiar no chão, e esses foram os que mais dificuldade encontraram. Alguns descobriram que podiam mover-se mais para cima e mais para baixo, ganhando mais uma dimensão em que desviar das coisas que não para a esquerda e para a direita. Não demorou até que os mais observadores aderissem também à nova tendência, alguns antes, outeros depois, mas nem todos gostaram da idéia, acreditando que poderiam sofrer quedas letais ou muito graves caso a crise da gravidade findasse tão repentinamente quanto veio. Entretanto, a panacéia da movimentação durou apenas algumas poucas horas, começando pelas determinações das empresas, que enviaram memorandos internos vetando dadas formas de movimentação constrangedoras ou que não refletissem a filosofia e os valores da companhia, e mesmo uniformizando as técnicas de deslocamento sob pena de advertência ou demissão sumária para os descumpridores. Novamente as redes midiáticas também contribuiram para este processo, uma vez que, entre os blocos jornalísticos, convocavam personalidades da moda e da etiqueta para ensinar aos seus espectadores as maneiras mais elegantes e adequadas de se movimentar e manter a distinção e a civilidade mesmo diante da Cirse da Gravidade.

A Crise da Gravidade, como todas as outras crises, monopolizou as atenções do país por alguns dias, e depois começou a se tornar uma normalidade aparente, só aparecendo como fator a afetar outras questões de cunho mais sério, por exemplo a economia e a política. O primeiro setor a sofrer baixas com a Crise da Gravidade foi a aviação, que perdeu seus adeptos mais económicos que descobriram formas impressionantemente rápidas e confortáveis de se deslocar na nova configuração do ar -inclusive um cidadão de classe média bastante inventivo, provável leitor de júlio verne, que construiu um dispositivo de vôo individual velocíssimo usando uma bateria de automóvel, pás de batedeira, ventilador e mochila. Embora as lojas de departamento tenham dobrado suas vendas em função destas idiossincrasias da criatividade da nação, as grandes empresas de transporte aéreo se viram ameaçadas pela maldição da bancarrota, e como se faz nestas ocasiões em que muitos milhares de empregos e dórales etão em jogo, uniram-se numa coalizão para recorrerem de forma organizada ao governo do país. As muitas reuniões e negociações acabaram por impelir o exército, por uma questão de segurança nacional e individual de cada cidadão, a implementar medidas de proteção às fronteiras do país e das cidades, para evitar a passagem de pessoas portando equipamentos amadores que pudessem pôr em risco a integridade física de seus concidadãos e de si próprios. A gente mais inventiva, capaz de criar aeromodelos bastante sofisticados com materiais prosaicíssimos, encontrou formas de fazer os deslocamentos com seus veículos até próximo às fronteiras e cruzá-las a pé, digo, sem a ajuda de seus equipamentos e não necessariamente usando os pés (o leitor há de perdoar o autor pela força e hábito da expressão). O governo resolveu não se posicionar frente a esta nova modalidade mista de deslocamento intermunicipal, estadual ou nacional, conciliando também os anseios das grandes lojas de departamentos.

Com o passar dos primeiros meses, a população já estava totalmente habituada àquela nova situação, e apesar disso alguns segmentos da sociedade acabarm por se organizar para cobrar medidas de resolução da Crise da Gravidade. Com a opinião pública dividida entre os que acreditavam que o evento fora deletério à vida coletiva, os que tinham por convicção que a nova condição contribuíra para a vida e o bem-estar dos cidadãos, e os indiferentes àquele e a todos os acontecimentos, o governo instaurou uma comissão multidisciplinar para investigar as causas e os efeitos da crise. Presidida pelo presidente da câmara dos deputados, a comissão contava com um físico, um engenheiro, um padre, um pastor, um rabino, um ateu, um filósofo, um sociólogo, um antropólogo, um jornalista, um pedagogo, um químico, um fisioterapeuta e um advogado, incluído na junta por determinação da ordem dos advogados do país. Os custos da comissão ficariam por conta do governo federal, e para dar conta deste noso gasto público intituiu-se um novo imposto, a cnoic, contribuição nacional obrigatória para investigação de crise, que, segundo estudos dos economistas do governo, poder-se-ia aplicar em outras situações em que fosse necessária a formação de nova comissão como aquela.

Não ficou claro, embora anunciassem hipóteses os profetas e beatos aos que os ouvissem, nem a causa nem o motivo de tal crise se instaurar naquele país e sobre seus cidadãos independentemente de sua localização geográfica posterior -pois foi fato que os estrangeiros não sofreram o efeito da Crise da Gravidade, e que os cidadãos que do país se ausentassem não deixavam de estar sujeitos ao mesmo efeito de flutuação em solo estrangeiro. Digo causa e motivo porque não me refiro apenas aos predicados físicos e metafísicos do fenômeno, mas principalmente ao que motivou a conjuntura do universo, se é que existem de fato tais abstrações incorpóreas, a imprimir sobre o país que ficou conhecida como crise e que abriu um precedente inimaginavelmente importante sobre os anseios e metáforas do mundo ocidental, com suas filosofias e ideais. O fato é que assim como veio, foi-se sem dramas a crise da gravidade, e o país jamais se comportou tão exatamente da mesma forma que se comportava antes como depois dela.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home